As 4 Filhas de Olfa
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Kaouther Ben Hania
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Les filles d'Olfa
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2023
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França / Tunísia / Alemanha / Arábia Saudita / Chipre
Crítica
Leitores
Sinopse
Crítica
A tunisiana Olfa é uma cidadã que enfrentou privações e dramas desde cedo, sendo duramente afetada pelo fundamentalismo religioso que funciona como um pilar rígido do patriarcado no seu país situado ao norte da África. Como informa o título deste documentário indicado ao Oscar 2024, Olfa é mãe de quatro filhas. No entanto, está separada da metade delas, das mais velhas (por um motivo que saberemos ao longo do filme). Então, a cineasta Kaouther Ben Hania contrata duas atrizes representantes das ausentes Rahma (Nour Karoui) e Ghofrane (Ichrak Matar) que interagem com as caçulas verdadeiras, Eya e Tayssir, nas dramatizações de As 4 Filhas de Olfa. Portanto, a performance preenche as lacunas dos fatos num jogo de cena em que a representação é subordinada à realidade e existe de acordo com os seus parâmetros. Olfa é uma personagem fascinante, principalmente por conta da maneira como expõe as contradições emergentes num painel sociopolítico complexo como o da Tunísia. Aparentemente se sentindo à vontade diante da câmera, ela assume que cobrava das filhas certas atitudes que ela própria não conseguia tomar. A protagonista é uma mulher resiliente, capaz de enfrentar fisicamente durante a noite de núpcias o marido a quem foi prometida (algo encenado). Porém, em vários momentos Olfa lubrifica quase sem perceber as engrenagens de opressão das quais virou vítima.
Podemos analisar o filme a partir de duas dimensões. Uma delas diz respeito ao conjunto de temas abordados ao longo de As 4 Filhas de Olfa. O documentário aborda fundamentalismo, tensões geracionais, anseios de liberdade feminina, sequestro de individualidades pelos discursos de controle social, carência de afeto e, ainda, a capacidade de refletir sobre o passado tendo o presente como porto seguro. A outra ordem do longa diz respeito ao aspecto formal, justamente ao jogo cênico riquíssimo estabelecido pela fricção entre os componentes reais e ficcionais dessa trama costurada habilmente. Em vários instantes Olfa dirige a cena, impondo a fidelidade como regra a ser seguida na condução das reconstituições. A ela parece essencial o cinema ser um fiel espelho da realidade, um veículo para que a (sua) verdade venha à tona. Como personagem, Olfa dá depoimentos comoventes diretamente à câmera, falando dos abusos sofridos na adolescência, da descoberta inesperada do amor em meio a despretensiosos trotes telefônicos e da desilusão pelo comportamento errático de suas filhas. Isso tudo entre outras passagens que conservam um teor confessional capaz de aumentar a sensação de intimidade entre ela e o dispositivo. Isso também acontece com Eya e Tayssir, as garotas remanescentes que contam versões das histórias e aproveitam a mediação da equipe para dizer várias coisas a Olfa.
A cineasta Kaouther Ben Hania aparece em dois momentos, num deles anunciando estar nervosa diante da empreitada e no outro enquanto é maquiada. Nada que insira a realizadora nesse jogo de cena como uma personagem relevante. Os momentos cinematograficamente tocantes de As 4 Filhas de Olfa acontecem quando a ficção interfere na realidade e vice-versa, como quando uma das filhas da protagonista não consegue continuar a encenação porque a representação do episódio doloroso traz à tona as sensações que ela acreditava ter superado. Em outro instante sintomático desse curto-circuito instigante, o ator se recusa a continuar interpretando o ex-namorado abusador enquanto Eya segura uma faca afiada diante dele – ela está reelaborando os abusos sofridos. Somos levados à seguinte constatação: o intérprete ficou temeroso de que o retorno das memórias dolorosas pudesse levar Eya a agredi-lo de verdade, o que o faz renunciar à cena. Por sua vez, Olfa tenta constantemente manter o controle da representação de sua história, frequentemente corrigindo a atriz Hind Sabri, escalada para interpretá-la em cenas emocionalmente mais difíceis e potencialmente angustiantes. A realizadora poderia contar essa história de diversas maneiras, mas optou por uma bem-sucedida mescla entre investigação formal e revelação de fatos sintomáticos de uma situação complexa. O resultado é estimulante.
Especialmente na sua segunda metade, As 4 Filhas de Olfa vai dando cada vez mais espaço para o retrato da família de Olfa em detrimento do jogo tão citado neste texto – não à toa, pois é uma das estratégias que fazem o documentário deixar de lado os convencionalismos. Uma vez estabelecidos os parâmetros dessa tensão entre ficção e realidade, Kaouther Ben Hania freia um pouco o exercício cênico para evitar que ele usurpe o protagonismo de Olfa, assim como dessa história de vida repleta de passagens dramáticas e contradições. A tunisiana que descobre a cabeça apenas em uma cena, deixando cabelos livres diante da câmera com a qual estabeleceu intimidade, é uma personagem e tanto, bem como Eya e Tayssir, garotas que falam de frustrações da infância e de como foram afetadas pelo fundamentalismo que acabou sequestrando as irmãs mais velhas. A questão implícita da hereditariedade, do espólio comportamental passado através das gerações, vem à tona quando as filhas e a mãe discutem sobre como é perversa a continuidade de algo considerado violento. Olfa concorda que ensinou as filhas de acordo com os parâmetros que a asfixiaram a vida inteira, não chegando a se aprofundar nessa constatação. Então, a conversa que poderia ser uma catarse vira algo maior, pois contempla a melancolia da quase inevitabilidade. Um filme perspicaz e sensível sobre como colocar certas dores em cena.
Filme visto durante o 25º Festival do Rio (2023)
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