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Sinopse

Quando a filha é encontrada morta numa praia, Carlos se desespera. Ele exige resposta dos policiais, dispostos a considerar o caso como um suicídio. Mas o pai tem certeza de que alguém foi responsável pelo assassinato da garota, e conduz sua própria investigação em busca do verdadeiro culpado.

Crítica

Este filme parte do pressuposto que um pai em busca de justiça possui direitos e liberdades excepcionais. Quando a jovem Fernanda (Elisa Telles) é encontrada morta numa praia, o pai Carlos (Paulo Vespúcio) se desespera. Compreende-se a indignação deste homem confrontado a um dilema universal: em todas as partes do mundo, em qualquer cultura, famílias sofrem com a perda de seus descendentes. Por isso, quando ele chora, grita, se altera, bate na pessoa errada e ameaça outras, sem provas, tendemos à condescendência com o sujeito incapaz de realizar o luto. O ponto de vista se mostra solidário com o herói a ponto de transformar sua ira em virtude: quanto mais longe ele vai em busca de respostas ao crime, mais honrado, digno e corajoso se torna. De certo modo, o protagonista legitima sua moral pela morte alheia. Desconhecemos em profundidade as dores da garota morta, enxergada em fragmentos lacônicos. Carlos pode se importar bastante com a filha, mas o longa-metragem não o acompanha neste processo: o cadáver da adolescente serve apenas a alimentar o lado brutal do homem comum, insinuando que todos possuímos tal força combativa dentro de nós. A garota carrega uma voz infantilizada, move-se em lembranças como a delicada bailarina de uma caixinha de música. Ela se limita à condição de vítima dentro de um discurso preocupado somente com as figuras masculinas ao redor.

Apesar do teor sentimental de simples identificação, As Almas que Dançam no Escuro (2021) é prejudicado pela construção dos diálogos. O roteiro depende excessivamente de falas artificiais que confundem respeito e decoro com o teor literário. “Ela me procurou para que eu pudesse ajudar”, argumenta o padre (Alan Pellegrino); adiante, fala-se em “sentirem-se amadas através dos olhos de uma pessoa”, “só assim eu poderei liberar o laudo”, “me encontra mais tarde para falarmos sobre isso”, “eu tenho certeza que eu nunca fiz nada que a levasse a tirar a própria vida”. Orações longas repletas de subjuntivos, futuros do presente e de termos pomposos combinam-se com frases de efeito (“Quando encaramos o mar assim é que sabemos…”, “E pelo visto, alguns nunca voltam”), comprometendo a verossimilhança. O elenco faz o que pode, porém se mostra incapaz de atribuir naturalidade às frases mal encaixadas à embocadura dos atores. Mesmo as confissões via áudio do WhatsApp soam estranhas, pois convenientes: caso tivessem sido ouvidas de uma vez por todas, o filme se encerraria como um curta-metragem. Para um projeto de dinâmica limitada, os diálogos precisariam de maior naturalidade. Embora se trate de um universo fabular, o autor claramente buscava uma construção naturalista para as atitudes de Carlos.

A elaboração estética sublinha o efeito de estranhamento, decorrente especialmente das escolhas de som. Carlos percorre ambientes estranhamente silenciosos, sem pessoas, ruídos, nem ações acontecendo ao redor. A praia está completamente vazia, assim como o estúdio de tatuagem, o cais, a delegacia, a igreja, a recepção do médico, a rua onde se provoca uma briga. O herói se desloca através de um universo-bolha desprovido de conversas, de carros, e de conflitos paralelos ao seu. Sem dilemas próprios, os coadjuvantes existem em função de Carlos, esperando o “ação" para de se moverem rumo ao protagonista. O ápice deste efeito se encontra no Clube Inferno, um submundo de interações semelhantes a uma performance coreografada - pelos cantos, uma mulher sensualiza com a parede. Os estranhos enquadramentos na casa de Carlos, as brigas de frágil coreografia e montagem (o pai sequer agarra os cabelos de sua vítima) e a tosse com sangue anunciando a morte, como nos quadros de tuberculose de três séculos atrás, coroam o ambiente de difícil imersão para o espectador. Afinal, o aspecto fantástico não dispensa o cuidado com a construção dos espaços, do tempo, do som e da luz.

Em termos de discurso, As Almas que Dançam no Escuro se revela ambíguo. Por um lado, sugere a inutilidade em se buscar um culpado no caso do suposto suicídio da garota. É a procura desenfreada por um responsável a quem odiar que leva Carlos à ruína. (Uma vez imerso no processo de vingança, o homem deixa de trabalhar, de ter obrigações, família, compromissos: ele passa dia e noite em função de sua epopeia particular). Por outro lado, dedica a integralidade da narrativa a apontar dedos aos verdadeiros responsáveis. Nota-se um incômodo aspecto moralista nesta jornada, seja para elogiar o pai por sua coragem, criticá-lo pela revanche cega, ou para demonizar figuras que frequentam inferninhos, praticam o sexo livre e usam dreadlocks. Enquanto o padre representa a pureza e o altruísmo, os músicos descolados e jovens libertinos oferecem a perdição à moça virginal. O longa-metragem demonstra dificuldade em enxergar mulheres para além da dicotomia santa-prostituta: Fernanda será sempre a filha, a namorada, a amiga determinada pela relação com os homens e construída pelas impressões de terceiros. Ela jamais adquire autonomia no relato de sua própria morte.

Pode-se valorizar a mensagem final, contrária à vingança a qualquer preço; assim como a predisposição a combinar um drama íntimo com elementos fantásticos. O cinema brasileiro certamente se beneficia de iniciativas dispostas a abraçar o potencial subversivo das produções de gênero. Alguns evocarão a proximidade com Fausto, no entanto, existe uma diferença fundamental com o personagem clássico que travava um pacto com o diabo de maneira fria e racional, visando benefício próprio. Aqui, Carlos é enganado por um demônio sedutor (Francisco Gaspar), de maneira irrefletida. Ora, esta narrativa de crime e castigo sofre com a mão pesada da direção, as atuações descontroladas, a sobrecarga de símbolos (a insistência da câmera no quadro demoníaco) e a exploração teatral do tempo e do espaço. O diretor Marcos DeBrito havia demonstrado seu potencial com o forte Condado Macabro (2015), transformando-se numa das vozes ativas em defesa do terror nacional. Embora se deseje encorajar produções do tipo, o incentivo não pode se confundir com a ausência de olhar crítico em relação ao uso da linguagem cinematográfica. O projeto se beneficiaria de um polimento no texto, de distanciamento na produção, e sobretudo da inclusão de artistas mulheres nas funções criativas principais, ponderando a representação contraproducente das personagens femininas. 

Filme visto online no 12º Cinefantasy, em setembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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