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Sinopse

As Cores e Amores de Lore retrata os últimos anos da pintora alemã Eleonore Koch, única discípula de Alfredo Volpi, radicada no Brasil desde a Segunda Guerra Mundial. A artista viveu livre e intensamente, dedicando sua vida à arte. Documentário.

Crítica

Como se filma uma artista? Utilizando as suas obras como marcadores cartográficos de uma vida inteira? Estabelecendo pontos de contato entre a produção e a intimidade do biografado? O veterano cineasta Jorge Bodanzky faz um pouco de tudo isso em As Cores e Amores de Lore, documentário sobre a pintora alemã Eleonore Koch, única discípula de Alfredo Volpi, radicada no Brasil desde a Segunda Guerra Mundial. Com acesso privilegiado aos materiais de arquivo e à protagonista, ele opta por uma cronologia simples, em linha reta, sem tantas idas e vindas temporais.  Bodanzky mostra desde a infância europeia da mulher exilada no Brasil com a família por conta da guerra, passando pela fase de aprendizado e amadurecimento profissional, chegando ao pós-morte no qual essa artista é descoberta por um novo público. Desse modo, o longa-metragem transmite uma sensação mais clara de trajetória. Eleonore relembra momentos marcantes de sua meninice enquanto o realizador, encarregado de resumir os fatos, ilustra o relato com fotografias esmaecidas, cartas caracterizadas por afeto e significativas marcas de deterioração, enfim, com os indícios de uma existência agitada. A abordagem é muito bonita e, sobretudo na primeira parte do filme, busca alcançar a intimidade por meio da identificação. O cineasta entra em cena como personagem, se revelando e associando Eleonore consigo mesmo.

Aparentemente, Jorge Bodanzky tenta encontrar fragmentos da própria história ao estudar Eleonore Koch – ela é mais nova que os avós dele e um pouco mais velha que seus pais. Então, é muito interessante esse movimento de localizar na biografia do outro frações que se interligam com tantas outras experiências de imigrantes integrantes de uma burguesia intelectual. No entanto, infelizmente o realizador logo abandona essa investigação cruzada e faz das simetrias um dispositivo mais esporádico e menos importante. O lamento é porque esse “abandono” transforma As Cores e Amores de Lore num filme mais convencional – ainda que bonito pelo modo como desmembra uma vida em pequenos trechos expressivos. Não à toa Bodanzky também deixa um pouco de lado o seu status de personagem, passando a ser somente a voz gentil encarregada de questionar a protagonista em busca de informações. Eleonore fala de diversos temas ao longo dos cerca de 80 minutos da produção, da sua posição como mulher num mundo dominado por homens aos contratempos que fizeram ela questionar a vocação artística que a tornaria célebre. O que vemos na tela é uma senhora ora decidida, ora hesitante a respeito dos rumos tomados ao longo de quase 100 anos, em meio à reflexão tocante sobre uma vida caminhando evidentemente a momentos derradeiros. O filme cresce quando “respira” com ela.

Mas o que significa esse “respira com ela”? Que As Cores e Amores de Lore toma proporções maiores quando menos empenhado em dar informações e mais no resultado das reflexões da protagonista instigada a encarar o passado e ponderar como vários episódios formaram o que ela é. Justamente nesses instantes ganhamos maior amplitude na relação com uma mulher que testemunhou inúmeras mudanças sociais/pessoais (o êxodo, a adaptação ao país em muito diferente do seu natal, a apropriação do status de artista, a busca do estilo próprio, etc.). Talvez por falta de interesse ou mesmo em prol da síntese, Jorge Bodanzky passa um pouco batido por alguns assuntos que surgem automaticamente depois de certas constatações. Um exemplo disso é a quantidade de recortes de jornais com críticas severas ao trabalho de Eleonore, em sua maioria escritas por homens que a reduzem a pupila de um mestre consagrado. Mais tarde, a protagonista fala de sua voracidade sexual como uma espécie de resposta instintiva às barreiras profissionais que se erguiam diante dela: “se eu não podia ser artista, nada me impedia de ser mulher”. O cineasta está tão mais imbuído do desejo de celebrar a individualidade dela que deixa a desejar na atenção a essa indicativa necessidade de ser associada a homens para “existir”. A isso ele prefere continuar ouvindo a depoente disponível que demonstra uma lucidez invejável.

Como resumo sensível, As Cores e Amores de Lore é um documentário louvável. Primeiro, por conta da capacidade de discutir a partir de uma franciscana economia de recursos. Segundo, pela capacidade notável de compreender o espírito das épocas citadas a partir da experiência particular dessa mulher levada a se tornar brasileira em virtude dos horrores da guerra. Jorge Bodanzky poderia estender um pouco mais a sua instigante participação como personagem, talvez assim aumentando a provocativa transversalidade do começo, ou seja, a possibilidade de compreender um pouco a própria história familiar a partir dos relatos de uma estranha. No entanto, ele opta por cada vez mais mergulhar na subjetividade de uma mulher que chegava ao fim da vida anunciando ter poucos (quase nenhum) arrependimentos, alguém descrita em cartas de amor como o tipo de pessoa que deixa marcas indeléveis e suscita saudade. E algumas perguntas ficam implícitas ao longo do desenvolvimento do documentário: o quanto uma obra revela do artista? O que significa intimamente dedicar-se a representar de modo figurativo o mundo? Eleonore pintou pouquíssimas imagens humanas, se dedicando basicamente a objetos e cenários como temas. Por quê? Felizmente o filme não oferece respostas para essas e outras questões que ficam no ar, assim provocando uma curiosidade humana genuína sobre Eleonore.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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