Crítica
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Crítica
Em princípio, filmes são fenômenos projetados numa tela diante de pessoas que não têm o poder de alterar os rumos de suas narrativas. Esse acordo tácito de distância entre obra e plateia vigora desde que foram apresentados ao público os primeiros experimentos com imagens em movimento. Na atualidade, uma parcela de consumidores reivindica interferência sobre os filmes – além das possibilidades de acelerar, diminuir, pausar, avançar e retroceder às quais fomos acostumados desde o surgimento do home vídeo. Basta uma navegada pela internet para tomar contato com gente defendendo bizarrices do tipo “botão para pular cenas de sexo”, entre outras abominações que apontam exatamente a uma ansiedade por controle. Soma-se a isso a avidez de certas fatias desse público pelo consumo de experiências que apenas materializem as suas expectativas confortavelmente, com isso refutando surpresas, provocações e afins. Filmes interativos como As Escolhas do Amor atendem aos anseios desses grupos que reivindicam algum tipo de poder sobre os filmes, assim renunciando à contemplação. Para certos teóricos, esse desejo por interatividade é alimentado pela importância crescente dos games. Desse modo, as fronteiras básicas entre os filmes e os jogos eletrônicos seriam gradativamente abolidas ou extintas. Nessa comédia romântica da Netflix, somos convocados a decidir pela protagonista.
A personagem principal de As Escolhas do Amor é Cami (Laura Marano), engenheira de som que vive um relacionamento estável – existe a expectativa de ela ser pedida logo em casamento. A trama começa numa cartomante e a primeira escolha que temos de fazer é entre receber boas ou más notícias – o chavão sempre manda optarmos pelas más notícias primeiro, não é mesmo? Portanto, aqui já temos uma sugestão do que seria melhor fazer. Pois bem, assim como essa encruzilhada, surgem outras tantas ao longo do filme. Elas necessitam da intromissão do espectador – sujeito que quase nem poderia mais ser chamado assim, pois é convocado a determinar o que Cami deve fazer diante de dúvidas capazes de influenciar coisas importantes. A sobrinha deve revidar a chacota do valentão na escola? Cami deve se impor quando o chefe faz pressão para ela ficar com um trabalho menos estimulante? A jovem deve se comportar profissionalmente diante de um astro do rock ou ceder aos evidentes flertes dele? O cineasta Stuart McDonald cede ao detentor do controle remoto a primazia da decisão, daquilo que Cami precisa fazer diante de alternativas e das suas ramificações. Diferentemente de Black Mirror: Bandersnatch (2018), que utilizava a interatividade dentro de uma lógica metalinguística para revelar que o poder de opção era uma ilusão irônica, aqui a operação é muito menos inventiva.
Sem o truque da interatividade, As Escolhas do Amor seria um daqueles filmes despejados diariamente nos catálogos de streaming, do tipo que passa despercebido por ser genérico demais para cativar um grupo significativo de pessoas. Os personagens não têm espessura emocional, sendo apenas cascas ocas escravas dos dilemas. Cami deve ceder aos avanços do roqueiro bonitão, conceder uma segunda chance ao amor do passado que retornou à cidade ou dar um passo na relação com Paul (Scott Michael Foster) e se tornar esposa? O roqueiro bonitão é apenas um roqueiro bonitão, bem como o namorado legal é estritamente o namorado legal. Ninguém é mais do que esses papeis simplórios desempenhados na pouco interessante ciranda amorosa. E ela nem se torna menos enfadonha por conta das alternativas a serem ponderadas. Stuart McDonald aposta num expediente que torna a dinâmica interativa ainda mais tola: faz a protagonista perguntar diretamente à câmera sobre o que faremos diante de cada nova encruzilhada. Diferentemente da cumplicidade conquistada pela personagem principal de Fleabag (2016-2019) ao encarar o espectador e quebrar a quarta parede, Cami consegue apenas transparecer mais imaturidade emocional – traço não aproveitado pelo roteiro. Sua natureza volátil e inconsistente é um chamariz bobo para o espectador se sentir realmente no comando.
Diante de propostas como as dos filmes interativos, o espectador perde seu lugar de observador privilegiado e se torna supostamente parte do ato de criação. Na verdade, esse poder concedido é sempre relativo, afinal de contas os resultados das combinações de escolhas são finitos e foram pré-programados. As Escolhas do Amor tem finais em que Cami fica com cada um de seus pretendentes e outro no qual termina descartando todos eles – o que resultou das decisões do autor deste texto manteve a protagonista indecisa nos braços no namorado de longa data. Cinematograficamente falando, o longa-metragem é muito simplista, tem personagens rasos, desdobramentos previsíveis (mesmo com o truque da interatividade) e pouco interesse pelas obscuridades das intrigas amorosas. A estratégia é conceder um pouco de poder ao público e assim conquistar condescendência. Para que houvesse interação significativa entre espectador e protagonista seria preciso construir Cami de modo bem mais consistente, ao ponto de as escolhas do espectador refletirem o que ele deseja estritamente que aconteça a ela. Uma vez que o desenho da personagem deixa a desejar, o observador tende a ser motivado de maneira diferente, a optar por aquilo que ele próprio faria diante das encruzilhadas dela. É uma diferença aparentemente fútil, mas fundamental para determinar o teor desinteressante do filme/jogo.
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