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Sinopse

Alguns jovens desaparecem num camping de verão. Rumores absurdos começam a ser disseminados. Há um sentimento permanente de perigo. Nesse ambiente, uma relação ambígua se estabelece entre a jovem Laura e o escritor Paul, cujas implicações vão adensar ainda mais os mistérios presentes.

Crítica

O começo não poderia ser mais interessante: em um campo deserto, à noite, casais de jovens fazem sexo dentro de seus carros. Não há vigias, vizinhos nem qualquer tipo de empecilho, até escutarem o som amedrontador de uma pantera. Eles se vestem às pressas e fogem. O policiamento, no caso, é efetuado por uma ameaça selvagem, ou seja, uma barreira natural, ao invés de social, que implicaria no risco de morte. Ao longo da curta duração deste filme, o diretor Vincent Mariette multiplica as metáforas de animais ameaçando o prazer sexual da juventude. Enquanto o argentino Os Tubarões (2019) utilizava a ideia dos predadores como associação entre a sexualidade e a luta de classes, o suspense francês prefere a simbologia mais psicológica de panteras ou leopardos que, ao que tudo indica, podem não passar de uma alucinação, um sentimento de culpa dos protagonistas.

A narrativa surpreende pelo trabalho ostensivo de simbologias. Não existe uma única cena em que a jovem Laura (Lily-Rose Depp) não seja confrontada a aranhas na barraca, uma piscina com esquilos mortos, a presença de um javali violento, o sacrifício de uma ovelha na floresta, o olhar ameaçador de um garoto à noite, o sumiço de sua roupa íntima no camping, um plano aéreo que se aproxima como uma mira, a busca por uma “gruta mágica” representando uma vagina. Estes elementos constituem ao mesmo tempo o maior trunfo e o principal problema de As Feras: se por um lado evocam uma representação menos literal da sexualidade, por outro lado, se acumulam sem se desenvolver, sem dar espaço para o desenvolvimento de personagens, ou para a reação destes a cada nova aparição. Se às vezes nos encontramos num universo fabular (e, portanto, moral e consequente), ora nos deparamos com uma fantasia surrealista que acumula metáforas pelo prazer (ou seja, um registro inconsequente).

Os melhores momentos se encontram na interação bastante realista entre Laura e os demais adolescentes em férias. Lily-Rose Depp está excepcional na entrega do corpo e dos diálogos às provocações com a prima, à sedução do primo mais novo, ao voyeurismo com os jovens mais velhos. Se o projeto se concentrasse nesta exploração lúdica da aproximação entre o desejo e o perigo (nos moldes de Um Estranho no Lago, 2013), talvez tivesse resultados mais refinados. No entanto, Mariette insiste em forçar o suspense pelos rumos do filme policial, o que implica num relacionamento um tanto absurdo entre Laura e seu “mentor” secreto Paul (Laurent Lafitte), ou ainda com uma policial com ares de vilã de James Bond (Camille Cottin), de cicatriz no rosto e entoando frases sedutoras. Estes dois personagens aparecem apenas para Laura, relacionam-se unicamente com ela, como amigos imaginários, provocando um ruído considerável na narrativa.

Em determinados momentos, o filme pretende fornecer uma discussão histórico-teórica sobre a nossa necessidade de fabulação: “Este mundo perdeu todo o mistério, cabe a nos reinventá-lo”, Laura lê numa dissertação intitulada “O reencantamento do mundo”, em oposição ao famoso “O desencantamento do mundo” de Marcel Gauchet, clássico das ciências sociais sobre nossa crença cada vez menor nas forças transcendentais. As Feras possui portanto uma tese segundo a qual os indivíduos contemporâneos seriam carentes de ficções e mitos formadores, razão pela qual a lenda da pantera – e a existência do próprio cinema, por extensão – cumpririam um papel social formador. A narração explicativa retorna em alguns momentos, traduzindo o ponto de vista do autor a respeito das invenções que cercam a presença de animais selvagens no acampamento. Se permanecesse neste exemplo metafórico, a tese talvez se sustentasse. No entanto, o roteiro inclui amores abruptos, tentativas de suicídio no passado e um crime mal ocultado que soam retirados dos filmes B, cuja filiação o projeto nunca assume por completo.

Infelizmente, conforme avança, a história só perde em potência. Mariette possui um senso elegante de composição de imagens, além de talento evidente para a direção de atores. Ele trabalha o desejo sexual entre adolescentes sem condenar a sexualidade nem transformá-la em fetiche – esta é uma história sobre sexo na qual o sexo não dá as caras. No entanto, apesar do rico trabalho de ambientação, o projeto se enfraquece pela sobrecarga de simbologias cada vez menos sutis, e menos aprofundadas antes de serem substituídas pela próxima imagem sinistra. O filme se aproxima de uma sensação de aleatoriedade, como se a existência ou não da pantera importasse pouco, assim como a sobrevivência dos personagens. Entre filme de autor e filme de gênero, entre tese teórica e demonstração vaidosa das capacidades estéticas de seu criador, o resultado soa um tanto carregado, menos capaz de explorar as relações de poder (entre homem e natureza, entre masculino e feminino) do que aparentava a princípio.

 

Filme visto online no 10º MyFrenchFilmFestival, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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