float(3) float(1) float(3)

Crítica


6

Leitores


1 voto 6

Onde Assistir

Sinopse

Em virtude de uma decisão municipal, um abrigo para mulheres sem-teto está prestes a fechar as portas. As assistentes sociais fazem das tripas coração para evitar o desamparo das moradoras. Vale tudo, inclusive mexer os pauzinhos, distorcer a verdade e contar mentiras deslavadas.

Crítica

No período em que a França restringe diariamente seus direitos trabalhistas e sociais através de governos mais conservadores, talvez não seja uma surpresa que o cinema local produza tantas comédias dramáticas constatando o fracasso na tentativa de cuidar do povo, sejam os franceses ou imigrantes vivendo no país. Enquanto o movimento dos coletes amarelos toma as ruas, quando se questiona as propostas liberais sobre aposentadorias e xenófobas sobre a imigração, a cinematografia local obtém alguns de seus maiores sucessos por meio de obras afirmando que há muitas pessoas corajosas tentando ajudar os desprivilegiados. Estas obras representam ao mesmo tempo uma constatação da boa vontade e da limitação em termos de resultados. Em outras palavras, trata-se de um grupo de filmes destinados a representar uma vitória moral e uma derrota política.

Polissia (2011), Samba (2014), De Cabeça Erguida (2015), Uma Temporada na França (2017), Uma Casa à Beira-Mar (2017), Mauvaises Herbes (2018), As Boas Intenções (2018), A Chance de Fahim (2019), Damien Veut Changer le Monde (2019) e The Specials (2019) poderiam constituir um subgênero à parte dentro da cinematografia francesa da última década. Em comum, eles trazem professores, assistentes sociais ou apenas pessoas bem-intencionadas tentando ajudar moradores de rua, crianças órfãs, imigrantes sem documentos e refugiados africanos em solo francês. Mistura-se momentos dramáticos com cenas cômicas para manter o equilíbrio e garantir a diversão. Os professores/assistentes sociais procuram desenvolver algum relacionamento amoroso que não funciona bem, visto que estão dedicados demais às causas humanitárias. Ao final, sofrem alguns revezes, têm seus planos comunitários tolhidos pela macropolítica, mas não desistem. O discurso traz uma mensagem inequívoca de esperança.

Este cinema repleto de boas intenções pode contribuir a conscientizar o público sobre questões sociais urgentes. No entanto, não deixa de provocar certo incômodo. Primeiro, o ponto de vista escolhido para retratar as agruras da imigração, pobreza ou preconceito é aquele de franceses gentis, ao invés dos próprios desfavorecidos. Segundo, os protagonistas são movidos por um heroísmo sem falhas, um senso de retidão e uma necessidade de ajudar, mas jamais uma bandeira política mais ampla. Trata-se, em outras palavras, de caridade individual, não de justiça social. Ninguém pretende combater as regras mais ampla do sistema, apenas fazer o seu melhor dentro de um mecanismo viciado. É possível que filmes tão gentis sirvam a aplacar a consciência burguesa diante do evidente fracasso da integração social, além dos retrocessos de conquistas que faziam da França o “país dos direitos humanos” e um exemplo de gestão pública humanizada. “Fracassamos, mas estamos fazendo o possível”. Romantiza-se a pobreza pela ótica da persistência de heróis franceses e brancos.

Esta longa digressão serve a pensar sobre As Invisíveis (2018), produção que corresponde a todas as características descritas acima. No papel principal há três mulheres guerreiras que enfrentam todo tipo de ameaça para oferecer alguma forma de dignidade a pessoas em situação de rua. “Se uma delas conseguir um trabalho, já terá sido uma conquista”, afirma uma das assistentes sociais, que passa dia e noite cogitando a melhor maneira de inserir socialmente estas mulheres idosas, abandonadas, depressivas, furtivas. Em diversas cenas, as protagonistas desejam ajudá-las mais do que as próprias moradoras do centro de acolhimento desejam ser ajudadas. Audrey, Manu e Hélène são verdadeiros anjos da guarda. Obviamente, por dedicarem sua vida aos outros (Audrey até ajuda o irmão a pedir a noiva em casamento), não conseguem cuidar de si mesmas. Há uma noção de martírio destinada a tornar estas mulheres ainda mais virtuosas aos olhos do espectador. O sucesso relativo desta receita se deve em especial ao talento imenso de Audrey Lamy e Corinne Masiero, duas grandes atrizes que transitam entre a comédia e o drama com uma facilidade espantosa. Noémie Lvovsky exagera na tradicional fala doce e nos olhos ingênuos, mas também possui bons momentos.

É possível rir e chorar com o filme, que demonstra empatia tanto pelas protagonistas quanto pelas mulheres assistidas. Cria-se, assim, um feel good movie sobre a miséria do mundo – curiosa combinação que funciona bem em tempo de pautas morais. Talvez seja melhor dizer que temos um filme sobre a política do indivíduo, não a política da nação. Nenhuma dessas almas caridosas pensa em recorrer a instâncias superiores – deputados, governadores, organizações não-governamentais bem estruturadas, a imprensa etc. – porque se contentam com a extensão de seus esforços pessoais. Resta uma obra de valores consensuais, destinada a agradar esquerdas e direitas. O produto é bem filmado e montado, com bela iluminação e montagem ágil, ainda que soe um tanto asséptico: jamais vemos as mulheres em condição de rua dormindo pelas ruas; a evidente falta de dinheiro nunca se torna um conflito de fato. As moradoras do centro de acolhimento ilegal não possuem problemas com álcool, drogas nem furtos. Elas se tornam tão empoderadas pelos gestos de Audrey, Manu e Hélène que terminam por encarar mais um despejo com um sorriso no rosto, carregando em suas camisetas o símbolo inerte de um Smiley. Talvez seja essa a irônica sensação de dever cumprido do novo cinema social: sorrir diante das injustiças e acatá-las com um estoicismo orgulhoso.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
6
Alysson Oliveira
7
MÉDIA
6.5

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *