Crítica
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Sinopse
Uma atriz desabafa sobre sua experiência com arte e loucura em meio a uma série de encontros insólitos.
Crítica
Codiretor de Arábia (2017), um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, João Dumans alça um voo solo em As Linhas da Minha Mão. Projeto austero do ponto de vista da linguagem, trata-se de um documentário sobre Viviane de Cássia Ferreira, atriz da trupe Sapos e Afogados, um dos principais grupos teatrais do Brasil dedicados à interseção entre criação artística e saúde mental. No começo, a câmera parece hipnotizada pela personagem enquanto ela faz ioga na companhia de um amigo. Desse modo, não é surpreendente o fato de que Dumans também assine a fotografia, pois o filme se assume como objeto de um fascínio pessoal por meio das imagens feitas em planos próximos de Viviane com baixa profundidade de campo. Depende da disponibilidade do espectador a tentativa de compreender a abordagem, sobretudo os motivos que levaram um realizador a se ater especificamente àquela mulher. São um pouco desafiadores esses instantes iniciais, com o prolongamento das tomadas que mostram dois corpos em movimento interagindo aparentemente sem qualquer propósito cinematográfico. Logo depois, as discussões enveredam por conceitos relativamente vagos, com elucubrações labirínticas a respeito dos escritos do filósofo Friedrich Nietzsche. A interpretação de Viviane sobre a escolha do amigo pelo círculo como geometria que mais bem o representa ganha contornos de devaneio.
É preciso persistir diante de As Linhas da Minha Mão, vencer a pasmaceira consciente de uma imagem que insiste em manter seu foco concentrado na protagonista, raramente se abrindo ao outro, àquilo que eventualmente surge como réplica ou tréplica dos interlocutores. No entanto, o filme cresce a partir do momento em que Viviane de Cássia Ferreira revela a sua convivência com o Transtorno Bipolar, assim trazendo para o seu franciscano tecido narrativo as linhas que interligam a criação artística e as doenças de natureza mental. João Dumans escapa a toda e qualquer intenção cientificista ou diagnóstica, não demonstrando pretensão de utilizar a protagonista como exemplo de algo a ser estudado ou provado. Como alguém fascinado pelo outro, por meio da câmera próxima, ele emula seu deslumbramento diante da personagem, ao que parece pagando conscientemente o preço pela austeridade da proposta estética. Na cena em que Viviane conversa longamente com um rapaz conhecido, o interrompendo porque evidentemente precisa desabafar sobre certas circunstâncias específicas, o, digamos, milagre cinematográfico acontece. A aparente inércia se transmuta em vivacidade e ação por meio do relato magnético. Isso se repete apenas outra vez no filme, quando Viviane conta da viagem pela Itália marcada por frustrações profissionais, mas também pelo encontro erótico que a revigorou.
Aliás, também nos instantes em que Viviane faz menção à sua libido As Linhas da Minha Mão consegue romper o marasmo e oferecer outro ponto de interesse ao espectador. Na medida em que mergulha numa notável autoconsciência a respeito da condição como paciente psiquiátrica, Viviane nos oferece acesso privilegiado a uma (a sua) mente fervilhante. Certamente sofredora (inclusive pela morte da mãe, tantas vezes citadas), ela é altamente criativa, sempre aberta aos mistérios do mundo que podem ser transfigurados em arte ou cura. O que acaba depondo contra o filme, e reduzindo o seu impacto emocional, é a montagem de Luiz Pretti que interrompe abruptamente alguns segmentos interessantes. Dumans pode ser tão elogiado quando criticado por sua fidelidade cartesiana à personagem, pois ao mesmo tempo em que é bonita essa reverência em forma de filme, sua opção por uma abordagem limitada evita que os assuntos reverberem para além do núcleo íntimo de Viviane. Em certa medida, o filme tem alguns ecos longínquos de Santiago (2007), a obra-prima documental de João Moreira Salles. No entanto, diferentemente do estilo direto de Dumans, João estiliza o diálogo com um personagem para representar simbolicamente a oposição entre um passado floreado e um presente solitário. Viviane não é tão performática quando o mordomo Santiago que representa um doce servilismo.
Aliás, falando em servilismo, num dos momentos marcantes de As Linhas da Minha Mão, Viviane reclama da tentativa de a colocarem numa dinâmica servil. Nessa toada, sobressai a fala dela afirmando que não tem direito a rompantes emocionais porque qualquer fuga do controle adquirido por meio da administração de medicamentos é lida socialmente como surto. As partes mais fortes do documentário são pontuadas pela eloquência da protagonista, bem como pelas formulações instigantes sobre o próprio processo de negociar cotidianamente com problemas de saúde mental. João Dumans às vezes estende os planos mais do que o suficiente, permitindo que num filme com menos de 80 minutos haja passagens triviais – que não servem nem para assimilar com menos pressa a singularidade dessa personagem que se desnuda em camadas. Porém, tendo em vista a nossa contemporaneidade feita de filmes cada vez mais acelerados por estímulos constantes (a fim de aplacar as expectativas do espectador ansioso), é louvável o convite à percepção das nuances subjetivas de alguém, para isso abdicando de preconcepções como quem deixa um calçado fora de casa ao visitar amigos queridos que dispensam a cerimônia. Viviane de Cássia Ferreira é uma personagem instigante e João Dumans evita a reduzir a artista/paciente psiquiátrica, a registrando como individualidade única que merece a atenção.
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