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Sinopse

Um homem numa viagem às montanhas. Detalhe: ele faz parte dos que muito comem e pouco engordam. Uma juíza delibera sobre a contenda entre um locador e uma locatária. Um cachorro altera a rotina de um casal de idosos.

Crítica

O cineasta português Miguel Gomes mira com certa dose de melancolia a atual situação socioeconômica portuguesa. O viés crítico das observações de As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado, segunda parte da trilogia em que ele se apropria de elementos das histórias contadas por Xerazade a um venturoso rei do Oriente Médio, é levemente menos categórico que o da primeira, As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto. Se no filme precedente ficavam mais explícitos os alvos, com políticos dando as caras e o desemprego sendo apontado como efeito colateral de más administrações públicas, por exemplo, aqui tanto o fabulário quanto os ataques estão mais diluídos nos contos que, nem por isso, perdem o caráter incisivo anteriormente visto. A própria narradora que, segundo a lenda, entretinha seu amo diariamente para que ele não a matasse, interfere menos, apenas pontuando circunstâncias em que a imagem não dá conta do todo, complementando-a verbalmente.

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Em Crônica da Fuga de Simão ‘Sem Tripas', vemos um idoso esgueirando-se pelas montanhas, o tal Simão Sem Tripas, assim chamado por pertencer à ordem dos homens que muito comem e pouco engordam. Drones barulhentos fazem a ronda aérea, uma tecnologia que contrasta com o meio pastoril em que esse homem outrora vivera e agora se esconde. Perseguido pela guarda, ele busca abrigo na natureza e, de vez em quando, interage com conhecidos. A despeito da fama de bandido – e sabemos de seu crime somente no desfecho do segmento – Simão é tratado com muito respeito, ganhando até ares de lenda, o que é ressaltado na passagem dionisíaca em que três belas mulheres lhe oferecem banquete após um ato carnal. Miguel Gomes expõe a aura extraordinária desse ensimesmado cuja casmurrice é, por vezes, confundida com maldade. Ludibriando a lei, no que ela tem de mais opressor, Simão vira um herói, alguém a quem o povo homenageia com palmas e vivas.

A melhor fração de As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado, e quiçá de toda trilogia, é As Lágrimas da Juíza. Depois de parabenizar a filha pela perda da virgindade, não sem aconselhá-la a também cozinhar para satisfazer seu homem plenamente (sinal de tradição retrógrada bem aceita pela jovem), a magistrada se põe a julgar o caso de uma locatária que colocou os móveis do senhorio à venda. Deliberando numa arena semelhante aos teatros gregos da antiguidade, a autoridade vestida de vermelho e seriedade ouve acusador e acusada, sem conseguir chegar à conclusão de certos e errados, pois, assim como estes conceitos no quais pretensamente se baseia, a justiça também é relativa. Um caso leva a outro, responsabilidades são transmitidas criando novos processos, numa cadeia que aparentemente não tem fim. Espíritos de vacas, comerciantes ilegais de gado, uma surda-muda humilhada na faculdade, o tarado que praticamente obriga a mulher a transar, entre outros personagens e seus respectivos porquês, proporcionam uma corrente de sordidez. A piedade se insinua para atenuar falhas oriundas, sobretudo, das circunstâncias.

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As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado prossegue num cenário urbano, ainda permeado pelos mistérios que Miguel Gomes evoca como indícios de um mundo arredio a explicações totalizantes. Em Os Donos de Dixie, um cachorro altera a rotina de um casal de idosos, no mais das vezes, entocados entre quatro paredes e com semblantes cansados. Ele é exatamente igual a Dixie, o mascote que morreu. Passa, então, a ser chamado pelo nome do falecido, o substituindo plenamente. Esse animal insólito conduz a trama, propiciando encontros capitais, e, mais tarde, tornando-se herança de uma tragédia que alude às dificuldades sofridas pela população portuguesa. O terraço, local em que as brasileiras praticam nudismo, é, segundo Xerazade (Crista Alfaiate), pouco visitado porque “uns têm vertigens, e outros, demasiada atração pelo abismo”. A morte se apresenta como única solução aos que não conseguem remediar problemas ou minimizar aflições. Mesmo que perca se comparado formalmente à primeira parte da trilogia, por não exibir a mesma inventividade no que tange à fusão orgânica de fábula e realidade, este filme reafirma a extrema capacidade de Miguel Gomes como realizador e contador de histórias.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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