Crítica
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Sinopse
Tudo começa nos anos 1990, quando Tao, nativa da província de Shanxi, fica dividida entre dois pretendentes. Um é herdeiro de um posto de combustíveis. O outro trabalha numa mina de carvão. Ambos são seus amigos de infância. Sua decisão terá consequências sintomáticas.
Crítica
As transformações da sociedade chinesa contemporânea continuam sendo o cerne da obra de Jia Zhangke, que em As Montanhas se Separam dá continuidade à exploração dos caminhos que guiam o desenvolvimento do capitalismo em seu país, presente em seus longas anteriores, como Plataforma (2000), O Mundo (2004) e Um Toque de Pecado (2013). A ambientação também é familiar - a cidade natal de Jia, Fenyang – e proporciona ao cineasta um domínio pleno do espaço para narrar uma história de escala grandiosa, dividida em três segmentos situados em épocas distintas. A trama se inicia em 1999, próximo à virada do ano, quando a bela Shen Tao (Zhao Tao) se vê em um triângulo amoroso envolvendo dois amigos de infância: Zhang Jinsheng (Yi Zhang), herdeiro de um posto de gasolina, e Liangzi (Jing Dong Liang), trabalhador de uma mina de carvão.
Nesse primeiro ato, Jia estabelece de modo primoroso a dinâmica entre os protagonistas, delineando suas personalidades e apresentando seus dilemas com extrema sutileza. É um início muito mais voltado ao lado humano da história, no qual Jia mergulha sem pudores na esfera do melodrama e coloca os sentimentos – amor, ciúmes, amizade – acima do plano material. Em meio a esse interesse pelas relações interpessoais, o cineasta começa a inserir suas observações sobre as mudanças sócio-culturais da China, afinal, a passagem para o ano 2000 é emblemática no imaginário universal como marco da chegada de novos tempos. E Jia investiga o envolvimento dos personagens com estes novos tempos, simbolizados por objetos como o carro importado de Zhang Jinsheng, que serve tanto para representar sua ambição quanto a dificuldade de Tao em lidar com uma nova realidade - retratada na cena em que bate o veículo.
Jia reforça as transições temporais entre os segmentos através da alteração da janela de projeção, que passa do formato reduzido de uma câmera Mini-DV dos anos 90 – utilizada pelo diretor para registrar imagens reais de celebrações que aparecem no longa – ao mais horizontalizado da era digital e dos i-Phones. Ao passo que a alternância de filtros da fotografia e a gradativa perda das cores vivas de figurinos e cenários do início ajudam a compor uma visão desesperançosa do futuro. Com essas ferramentas estéticas, o cineasta cria cenas de conversão repletas de simbolismos, como aquela em que Tao presencia a queda de uma aeronave militar – o prenúncio de tragédias vindouras – ou na do caminhão de carvão atolado – espelho da situação estagnada e sem perspectiva de avanço de Liangzi.
O segundo segmento, passado em 2014, apresenta um tom mais dramático, que lida diretamente com a dor da ausência e as consequências do choque geracional, presente especialmente no relacionamento de Tao com o filho, que agora mora com o pai na capital. A crônica social se intensifica, com Jia aproveitando para tratar de outros temas, como a crescente onda migratória da China – do próprio Zhang Jinsheng que deseja se mudar para os EUA ou a Austrália até o antigo colega de Liangzi que pretende deixar a mina de carvão para trabalhar no Cazaquistão. O conflito de gerações vai ganhando um espaço maior na narrativa conforme adentramos o segmento final, quando Jia vislumbra um futuro norteado pelo consumismo e pela perda de identidade.
O cineasta só enxerga uma possibilidade de salvação dentro de seu conceito futurista pouco otimista, e ela se encontra no resgate dos valores do passado. Não à toa, o filho de Tao, agora um jovem adulto que não vê a mãe há anos, se identifica com a antiga canção pop chinesa dos anos 90, reapresentada em um formato que acentua esse apego às raízes, o do vinil. É bem verdade que nesse último ato o equilíbrio narrativo é afetado por uma tentativa saudável do cineasta de abandonar sua zona de conforto e imaginar um universo que não seja completamente realista. Tentativa essa que resulta em um acúmulo de ideias interessantes, mas trabalhadas de modo mais apressado, que apresenta alguma insegurança no trabalho em outra língua e até mesmo fragilidades na caracterização da passagem do tempo para certos personagens.
As metáforas pouco sutis sobre os efeitos danosos do consumismo – o filho chamado Dólar – também contrastam com a delicadeza de sequências anteriores, como quando Tao percebe que deverá fazer sua escolha entre os pretendentes ou ao se martirizar por saber que esta decisão pode ter consequências trágicas. Ainda assim, Jia compensa essas pequenas falhas retomando o humanismo do início ao entregar uma sequência final belíssima protagonizada por sua musa, Zhao Tao. A força deste momento carregado de lirismo, que remete às imagens que abrem “As Montanhas se Separam” através da versão de Go West, dos Pet Shop Boys, faz com que o cineasta volte a enxergar seu povo, e a humanidade de um modo geral, com a esperança de encontrar um equilíbrio entre os avanços da modernidade e as tradições. Pois mesmo em meio a um mundo em constante metamorfose, sempre haverá a chave de casa, o sabor da comida preparada pela mãe ou a melodia de uma canção para reavivar a memória de tempos mais felizes.
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