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Sinopse

Os encontros entre Pietro (um garoto da cidade) e Bruno (filho de uma comunidade situada nas montanhas) escancaram diferenças, sinalizam amores e perdas, isso enquanto ambos descobrem algo sobre a amizade.

Crítica

Nunca pensei que uma simples amizade pudesse se transformar em uma relação tão definidora da minha própria existência”, afirma o protagonista de As Oito Montanhas logo no começo da trama. Pietro (Lupo Barbiero) é um típico garoto de apartamento, filho único de um casal não muito próximo, mas ligado o bastante para que as coisas seguissem de acordo com a ordem esperada. O pai (Filippo Timi, em participação mínima) acredita ser sua responsabilidade fornecer os bens materiais, e por isso passa o tempo todo trabalhando, negligenciando afeto aos dois que dele tanto dependem. A mãe (Elena Lietti, de Tre Piani, 2021), por sua vez, leva os dias com o coração dividido, se esforçando para compreender o marido, ao mesmo tempo em que percebe as insatisfações do garoto. Tanto é que, durante um mês de férias, rumam ao interior, alugando uma casa em um vilarejo afastado de tudo e todos. Lá, a única criança das redondezas, Bruno (Cristiano Sassella), acaba se aproximando, e a conexão entre os pequenos, enfim, se dá. Estão em uma região montanhosa, e o horizonte parece fácil de ser alcançado. Um sonho que, mesmo que sem palavras ou promessas, acaba se tornando um compromisso de toda uma vida. Um acordo tácito que se dá também com a audiência, frente a uma história de amor como poucas outras.

Sim, pois não se fala da paixão carnal, tão banal e passageira, que surge de modo tempestuoso para atormentar julgamentos e desejos, pronta para partir de forma tão rápida quanto se aproxima. O que passa a existir entre Pietro e Bruno é uma conexão de almas, uma dependência mútua, não exigente ou limitadora, mas que se potencializa pelo olhar, pela ciência do quanto um necessita do outro. Tem-se uma amizade que não precisa de manutenção, como um deles chega a concluir em certa passagem, mas da qual ambos precisam se alimentar de tempos em tempos, por maior que seja o período que permaneçam afastados. Pietro é a modernidade, mas também a preguiça, é o que apresenta o novo, e com esse o sentimento de desperdício, de não saber qual é o seu lugar no mundo. Bruno é o que permanece, é a segurança de estar no mesmo lugar, é tradição e orgulho, que pode balançar de acordo com o vento que lhe for imposto, mas do qual se tem certeza de que irá retornar. Ambos se completam, a despeito de famílias, amores ou trabalhos. Não há entre eles exigências ou cobranças, mas um alinhamento maior, estabelecido não por imposição, mas por ser o certo a fazer.

Se o mundo fosse dividido em oito linhas retas, de norte a sul, leste a oeste, nordeste a sudeste, noroeste e sudoeste, o caminhante disposto a explorar essa realidade teria pela frente oito montanhas a vencer, até chegar ao centro e se tornar uma pessoa diferente pelo que foi vivenciado. Pietro é o insatisfeito, aquele em movimento que tem o chão pela frente a ser descoberto. Bruno, no entanto, estará no mesmo lugar, por ele esperando. Há, entre os dois, ainda uma outra sinergia: o relacionamento paterno. O menino que nunca estudou e pensa em levar a vida fabricando queijo tem no pai ausente uma figura à distância, que retorna apenas para exigir dele uma entrega contra a qual sabe não ter como reagir. Quando encontra no pai de Pietro o acolhimento que nunca pensou ser possível, isso se dá muito em parte por esse também estar à procura de um filho disposto a retribuir o sentimento que nele transborda. Pietro deposita nesse homem suas insatisfações, e só quando for tarde demais irá descobrir que este fora duas pessoas, de um lado o provedor distante, do outro um ser sensível e nostálgico que muito cedo partiu. Essa troca se dará de modo orgânico e natural, e será através do outro que irão sanar suas carências.

Após a morte do pai, Pietro (agora vivido por Luca Marinelli) retorna após mais de uma década ao lugar daquela infância feliz, e reencontra Bruno (Alessandro Borghi, de Fortunata, 2017), que lhe revela o último desejo do homem que compartilharam: a reconstrução de uma casa às ruínas no pé da montanha. A rejeição inicial logo é superada, e assim retomam de onde pararam tantos anos antes, dedicando os próximos meses a uma ambição que é mais deles do que daquele que não mais está ali. Cria-se, portanto, um santuário, um lugar ao qual podem a todo instante retornar, que não pertence nem a um, nem a outro, mas aos dois. A suspeição de um envolvimento amoroso entre eles, que levaria a natureza dessa relação a uma conotação LGBTQIA+, é não mais do que isso: uma possibilidade que se cogita, porém sem a força suficiente para ser concreta. Eles precisam do que formam quando juntos de modo muito mais forte e elevado, que vai além de um gozo egoísta ou um sentimento de posse transitório. Bruno acaba casando-se, tem uma filha, e adota a mãe do amigo como se fosse sua própria, dando a ela também uma neta. Os problemas da vida moderna demoram, mas chegam – compromissos financeiros, estratégias empresariais, a modernidade impositora – gerando conflitos e insatisfações. Tanto é demais para os dois que, se um reluta em enfrentar o urgente, o outro opta por fugir para o outro lado do mundo. Será no Nepal que Pietro irá encontrar o amor, ainda que seu coração o siga chamando de volta.

Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeerch são companheiros na vida real, mas os laços que os unem vêm de muito antes. Ele fora indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, pela Bélgica, por Alabama Monroe (2012), longa que ela, também atriz, colaborou no roteiro. Em As Oito Montanhas atuam juntos na escrita e na direção pela primeira vez, e a delicadeza de abordagem que demonstram faz paralelo com a excelência alcançada na ficção por dois atores com impressionante capacidade de troca. Marinelli e Borghi formam duas partes de um todo, o alcance de um vai até a disposição do outro, completando-se mutuamente seja por um olhar sorrateiro, uma frase não dita, um sentimento recolhido, um abraço reconfortante. Longe de ser um mero capricho, o que estabelecem tanto os consome como retribui, na mesma medida que aquele em frente necessita e dispõe. Um mergulho profundo na natureza do amor fraterno, no seu poder transformador e na medida em que esses esforços possuem alcance somente até certo ponto. As fronteiras que separam os homens podem ser tanto geográficas quanto autoimpostas, e são essas as mais severas e determinantes, pois dessas não se consegue contornar ou mesmo se sobrepor. Por maior que seja o percurso a se percorrer, do chão ao topo do mundo, resta apenas agradecer pelos momentos vividos, pois são esses que seguirão vívidos, a despeito de toda e qualquer adversidade.

Filme visto na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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