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Sinopse

Dois forasteiros chegam a uma vila de pescadores no litoral maranhense. O casal acaba transformando a vida do lugarejo, bagunçando profundamente a rotina daquele lugar.

Crítica

Desde seu primeiro longa-metragem, o maranhense Frederico Machado tem desenvolvido uma filmografia bastante coesa. Além de trabalhar com um grupo cativo de atores, ocupando as mesmas regiões litorâneas do Estado, ele persiste no confronto de pessoas comuns à violência da natureza (humana e física), provocando a desestabilização das famílias. Na hora de desenhar um embate entre personagens via diálogo ou via olhares, o diretor sempre prefere à última opção; entre promover a união ou semear o caos, prevalecem os conflitos resultando em separação e morte. Os corpos, profundamente sensuais, deslizam pela terra, pela areia, pelas águas e por folhas mortas. Filho de poeta, e assumindo para si a postura de poeta das imagens, o cineasta desenvolve uma cinematografia das sensações e dos estímulos primários (amor, ódio, ciúme, desejo sexual), baseada na fricção literal entre as pessoas e os espaços. Algum estudioso ou montador dedicado poderia brincar em aproximar estes personagens através de uma colagem extrafilme, reforçando a sensação de que todos pertencem ao mesmo universo.

Dentro da chamada Trilogia Dantesca, iniciada por O Exercício do Caos (2012) e O Signo das Tetas (2016), As Órbitas da Água (2020) constitui o filme mais hermético, e também o mais radical. O erotismo se aprofunda, assim como as trocas silenciosas e a tendência natural à tragédia, como se todo herói se encaminhasse organicamente rumo à morte em nome da honra. Dividido em três partes (“Água”, “Lodo”, “Órbitas”), o filme dedica o terço inicial ao retrato mudo de pulsões. À medida que um casal de forasteiros chega ao pequeno vilarejo à beira do rio, os moradores locais expressam reservas via olhares de desaprovação. As duplas são contrastadas: de um lado, Antônio Saboia e Rejane Arruda manifestam-se exclusivamente por beijos e sexo, devorando os habitantes ao redor numa pansexualidade assustadora para os núcleos mais conservadores (vide a imagem do terço cristão pregado à parede). Por outro lado, Auro Juriciê e Flávia Bittencourt representam a família patriarcal em sua constituição de base, com o marido dominador exercendo poder sobre a mulher. A dupla jovem da cidade passa a ameaçar o modo de vida dos pescadores. Sem qualquer troca de palavras, o primeiro terço prepara o terreno à tragédia que virá.

Machado bebe de fontes clássicas, a começar pela tragédia grega. O texto original poderia ser lido como uma inspiração nos heróis de Sófocles e Eurípedes, ou mesmo nos protagonistas de Shakespeare, no sentido de constituírem homens confrontados a um destino que não dominam. Antônio Saboia desempenha o papel do forasteiro precisando acertar contas com o passado e consigo mesmo por meio do sangue. Curiosamente, surge uma analogia com seu personagem de Bacurau (2019) no sentido de representar o brasileiro branco e rico, sentindo-se superior à média dos conterrâneos. Em paralelo, a forte expressividade das figuras silenciosas, sobrepostas à orquestração imponente, guarda paralelos com o cinema mudo, cujos aspectos teatrais privilegiavam o épico, a epopeia, a grandiloquência das emoções. Dizia-se na época que a tragédia elevaria a alma humana por expiar nossos desejos e expor nossas fragilidades, confrontando o espectador a valores fundamentais da vida em sociedade. Em seus moldes intrinsecamente contemporâneos (pela sexualidade descomplexada e a filmagem digital de baixo orçamento), As Órbitas da Água preserva a aparência de um cinema dos gestos grandiosos. Devido ao teor das atuações, compreende-se desde o início que o choque entre dois mundos provocará uma solução definitiva.

Apesar da eficiente construção de clima e do registro coeso dos atores (que misturam nomes experientes com iniciantes), a experiência resulta árida pelo caráter cíclico das ações e a demora deliberada em apresentar personagens. Até o espectador descobrir de fato quem é o personagem principal, o que busca no vilarejo, e qual a sua relação com o morador representado por Auro Juriciê, já se terá testemunhado uma dúzia de cenas de beijos, danças sensuais nas águas, na cama ou em público. É difícil se identificar com personagens sobre os quais se conheça tão pouco em termos de personalidade, origens e objetivos. Estes fatores serão elucidados apenas em partes: muitos dados relevantes, acerca das mulheres principalmente, serão deixados à interpretação do espectador. A predileção por revelar o corpo feminino ao invés do masculino, durante o sexo heterossexual, também merece questionamento, assim como a representação do lesbianismo enquanto fetiche do homem. Por que a câmera adota o olhar do forasteiro neste caso, ao invés do olhar feminino? Enquanto a tensão sexual entre duas mulheres se resolve muito claramente na concretização do ato, a óbvia tensão homoerótica entre os dois homens permanece velada.

Em paralelo, o filme sofre com problemas de som. A trilha sonora é calibrada para um volume muito acima dos ruídos e diálogos. Deste modo, a composição bruta de Saboia (balbuciando palavras, enunciando frases pela metade, como convém a um homem desconfortável, com segredos) torna-se incompreensível em momentos importantes da trama. A opção por tantos planos e contraplanos durante as conversas, sobretudo quando os personagens se encontram em luzes distintas (caso da conversa à porta), também provoca estranhamento. O mesmo pode ser dito de uma iluminação muito fria e excessivamente nítida, exagerando na textura das peles sem real aplicação dramática do recurso. Em contrapartida, por sua construção voluntariamente labiríntica, o resultado comprova a confiança na potência das imagens. O filme acredita na capacidade de interpretação do espectador, assim como nas simbologias da natureza (a rede, os peixes, a areia, a lama). Trata-se de uma estética sem vaidades nem malabarismos de câmera, mas ao mesmo tempo, bem pensada em termos de enquadramentos e ritmo narrativo. O cineasta poderia facilitar a fruição do público caso o desejasse, adiantando informações ou fazendo a trama avançar para além da repetição de interações sensuais. Mesmo assim, escolhe concluir sua trilogia com uma abordagem sem concessões.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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