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Sinopse

Em As Três Filhas, irmãs distantes se reúnem em um pequeno apartamento em Nova York, EUA. Elas pretendem cuidar do pai doente. As emoções tomam conta dessa vigília absolutamente dolorosa. Estrelado por Natasha Lyonne, Elizabeth Olsen e Carrie Coon.

Crítica

É praticamente impossível não pensar em Gritos e Sussurros (1972), de Ingmar Bergman, diante de As Três Filhas. Na obra-prima do sueco, duas irmãs (e uma criada) permanecem em dolorosa vigília por conta do estado de saúde gravíssimo de uma terceira irmã. Mais até do que a obrigação de dialogar com a morte iminente de um ente querido, o mais importante nessa trama é como a situação traz à tona a incomunicabilidade familiar, especialmente a incapacidade das mulheres criadas sob o mesmo teto de se entenderem. Sem comunhão, elas nunca conseguem se apoiar mutuamente. E o longa-metragem dirigido por Azazel Jacobs parte de um princípio narrativo semelhante. Nele, um homem está tendo, ao que parece, os últimos momentos de sua vida, recebendo cuidados paliativos que visam prolongar a sua estadia por aqui enquanto tudo for menos do que insuportável. No entanto, quase nunca vemos esse sujeito. E isso reforça a ideia de que a sua condição é tratada dramaticamente como motivadora e também estopim. A circunstância obriga as três filhas do convalescente a conviverem novamente. Rachel (Natasha Lyonne) é a apostadora que mora com o pai, ou seja, está em sua casa. Christina (Elizabeth Olsen) reside em outra cidade e vive falando da felicidade familiar (de modo pouco convincente). E Katie (Carrie Coon) habita os arredores, porém raramente visita o pai doente. Ela tenta impor uma autoridade ao constantemente criticar as demais por aquilo que fizeram ou deixaram de fazer.

As frequentes brigas entre as irmãs são apenas ápices do choque entre os cenários internos e externos de cada uma. Aliás, Rachel, Christina e Katie lidam de maneiras bem diferentes com a realidade de perder logo a referência paterna. A primeira prefere se isolar no quarto e continuar fumando maconha como se não houvesse o amanhã. Rachel precisa negociar com a dor da orfandade e também com o fato de tudo acontecer em sua casa, inclusive com as irmãs se metendo, criticando da falta de variedade na geladeira aos modos distantes dela. Já a segunda repete o discurso do amor pela família deixada momentaneamente em outra cidade como um mantra utilizado para autoconvencimento. Christina é aquela que acredita ser fundamental aparentar felicidade para afugentar a verdade inconveniente de que ninguém é tão feliz assim como ela prega. Já a terceira elabora a angústia a partir de uma obsessão pelo diagnóstico dos erros alheios. Às vezes chegando a ser cruel com as demais, Katie claramente está atacando para se defender. Mas do quê? De quem, senão dela própria? Azazel Jacobs faz questão de reiterar visualmente que as três estão em mundos interiores muito particulares. Para isso, as isola em enquadramentos com fundos específicos, mantendo-as separadas em planos próprios, mesmo quando elas estão sentadas ao redor da mesa discutindo coisas de ordem emocional ou prática.

As Três Filhas tem um título original bem mais poético. His Three Daughters poderia ser traduzido livremente como As Três Filhas Dele, o que afirma o pai como aquele que unifica simbolicamente essas mulheres. O roteiro também a cargo de Azazel Jacobs é recheado de diálogos cortantes, de manifestações diretas de insatisfação e desespero pessoal. No entanto, também prevê entrelinhas devidamente valorizadas por essas atrizes excepcionais. Assim, há o subentendido, pois não dá para verbalizar todos os incômodos. Logo, é preciso citar com o devido destaque o trabalho do elenco principal. Natasha Lyonne faz de Rachel uma personagem fascinante pela capacidade (com um preço a pagar) de assimilar os maiores impropérios das irmãs, tentando elaborar isso diante do sofrimento pela debilidade do pai. Elizabeth Olsen tem uma missão não menos difícil na construção de Christina, mas igualmente se sai muito bem. Ela dá musculatura e verdade emocional a uma mulher que criou cenários ligeiramente fantasiosos de alegria e união para lidar melhor com a dura realidade. Por fim, Carrie Coon coloca para fora a força agressiva que faz de Katie uma figura inicialmente insuportável, mas que aos poucos tem quebrada a sua impenetrável casca. Essa mulher que parece uma censora incansável deixa escapar a fragilidade que ela própria se esforça para esconder, logo sendo vencida pelo cansaço.

Em princípio, as protagonistas são definidas a partir de algo, de características que supostamente as especificam. Katie é a mandona; Christina a apaziguadora; Rachel a fugitiva. Mas, aos poucos, essa superficialidade é quebrada pelo surgimento de nuances que revelam a vulnerabilidade de Katie, a fúria controlada de Christina e a resiliência de Rachel. No começo há os diálogos truncados, as falas passivo-agressivas que conservam traços de civilidade. Progressivamente, isso vai mudando, vide as palavras menos encobertas por uma fina membrana de gentileza. O mais instigante dessa jornada dolorosa de três mulheres íntimas e estranhas ao mesmo tempo é a forma como Azazel Jacobs trabalha as sutilezas e, quando preciso, as negocia para chegar a resultados dramáticos fervorosos.  Além disso, durante a maior parte do filme o pai é um corpo debilitado extracampo, ou seja, nunca o vemos. Ao finalmente decidir entre mostrar o homem ou mantê-lo invisível, o cineasta cria um episódio emocionalmente poderoso. E ele o faz com uma quebra de expectativa, logo depois de colocar na boca de uma personagem a definição do pai sobre como a ficção deveria representar a morte. Por mais que esse momento-chave seja uma espécie de fantasia, o bem-vindo acerto de contas que precede o luto, trata-se do instante em que as três são convocadas a enxergar o que há de bom nessa família, felizmente sem quaisquer soluções redentoras. As dores continuam, mas há a esperança de que as feridas cicatrizem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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