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Sinopse

Aos 11 anos, Amra tem uma vida comum nas estepes da Mongólia. Entretanto, sua infância é atravessada pela trágica morte do pai. A partir desse evento, o garoto assume a luta contra as mineradoras que exploram a região.

Crítica

O drama alemão-mongol parte das melhores intenções. Conforme atestam os letreiros, a mineração está destruindo os recursos naturais da Mongólia, além de levar ao desaparecimento de vilarejos e à exploração dos trabalhadores. Como o tema poderia resultar árido demais ao público médio, a diretora Byambasuren Davaa embute a discussão sociopolítica dentro de uma fábula universal a respeito de um garotinho descobrindo seu valor e seus talentos enquanto atravessa um período de luto. Curiosamente, a narrativa demora a transformá-lo em protagonista: durante o terço inicial, observamos filho, pai e mãe por um olhar externo, testemunhando a rotina deste núcleo em registro distanciado. Depois da tragédia, no entanto, a imagem mergulha na subjetividade do garoto que atribui a si mesmo a responsabilidade de honrar o legado das lutas familiares. Do dia para a noite, literalmente, o menino que pensava apenas em integrar a competição artística Mongolia’s Got Talent começa a vociferar contra as mineradoras e elaborar maneiras de sabotá-las, mesmo que seja pelo interior do sistema. A mudança ocorre de modo brusco demais, sintoma de uma história preocupada em demarcar as transformações para reforçar o valor das mesmas.

Esta não é a única guinada abrupta de As Veias do Mundo (2020). O projeto tem dificuldade em conciliar dois ou mais conflitos simultâneos, precisando abandonar um deles para passar ao seguinte. O concurso, fundamental para a abertura e para a construção do garotinho, é esquecido por um tempo inverossímil, sendo resgatado quando convém ao roteiro. Os adultos se queixam das ofensivas em busca de ouro, entretanto o espectador tarda a descobrir tanto a empresa multinacional quanto as ações desta na comunidade. O símbolo de uma marca de automóveis recebe tratamento especial enquanto relíquia para o protagonista, mas jamais retorna ao longo da história. Os conhecimentos inesperados de mecânica se tornam convenientes para uma cena, sendo ignorados a seguir. Deste modo, os personagens soam incoerentes, ora acatando passivamente a intervenção empresarial, ora reagindo com vigor; ora se movendo por escolhas pragmáticas, ora entregando-se por completo às emoções. Teria sido fundamental a Amra, à mãe e à irmã que estas possibilidades convivessem ao longo do filme. Possivelmente, na busca por clareza, Davaa não permita que diferentes aspectos da vida destas pessoas se contaminem e retroalimentem.

Devido à estrutura didática, o projeto se assemelha aos dramas hollywoodianos. A indústria norte-americana é perita na arte de acreditar que alguma causa social só pode se tornar relevante ao protagonista caso ele sofra diretamente deste mal (se for vítima de alguma doença, ou tiver perdido um familiar em decorrência das ações industriais). Não há ideologia ou luta política propriamente dita, apenas um senso de justiça e/ou vingança pessoais. Além disso, é preciso que o sofrimento evidente da criança se expanda para um martírio ainda maior – neste caso, Amra se torna explorado pelos mesmos criminosos que afligem seus familiares, em sinal de ingenuidade ou pureza. Como não torcer pelo menino que, além de cantar como um anjo, sofre com a dor do luto e sacrifica o corpo em nome do trabalho escravo, esforçando-se para manter a mãe nas terras empobrecidas? Ainda que a cineasta evite o caráter excessivamente melodramático, privilegiando os planos abertos da natureza e as ações silenciosas, o roteiro sublinha em excesso as intenções de cada reviravolta. Bat-Ireedui Batmunkh se mostra um ator mirim muito competente, cercado por adultos igualmente capazes de transmitir o misto de indignação e sofrimento. Em contrapartida, direção realista e roteiro fabular brigam um com o outro ao longo de toda a projeção.

Politicamente, As Veias do Mundo também possui alcance limitado. O discurso tem medo de nomear qualquer mineradora existente, ou mesmo fazer referência a alguma empresa em particular. Nem mesmo os diretores, chefes ou grandes engenheiros estão presentes. O pequeno grupo de quatro ou cinco operários trata de representar o inimigo, como se a direção não percebesse o fato que estes trabalhadores braçais também são explorados, por sua vez, pelo patrão invisível. Seria interessante descobrir onde moram, o que pensam da atividade praticada, e de que maneira enxergam os habitantes do vilarejo ocupado. Talvez assim o olhar se tornasse mais complexo, e o roteiro oferecesse uma reflexão mais profunda ao problema. Pelo menos, o líder dos mineradores evita o maniqueísmo caricatural, sendo o típico funcionário que “apenas cumpre ordens”, além de ser interpretado pelo ótimo Ariunbyamba Sukhee, pouco aproveitado diante do que evidentemente teria a oferecer. Resta uma denúncia ampla e um tanto vaga contra um sistema opressor, sem buscar compreender as origens deste setor, nem as maneiras de resistir para além da força de vontade. A substituição da questão extrativista pelo espetáculo musical, rumo à conclusão, atesta a dificuldade de confrontar as raízes do problema.

Ressalvas à parte, cabe uma ponderação: caso o drama estreasse nas salas de cinema independentes, como parte do circuito dito “de arte” das grandes capitais, provavelmente teria uma boa resposta, causando forte impressão entre a média dos títulos exibidos. Selecionado entre quase duzentas produções na Mostra de São Paulo, o drama alemão-mongol se perde ao lado de títulos excelentes, e comparáveis em aspectos temáticos e estéticos. Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição (2019) se sai melhor no mesmo princípio da liderança solitária contra um capitalismo desumano, afetando uma cidadezinha a de habitantes conformados. Outros projetos selecionados como o brasileiro Filho de Boi (2019) e o boliviano Os Nomes das Flores (2019) trabalham de maneira ainda mais eficaz a cartilha naturalista e a utilização dramática dos cenários – o que não invalida os méritos de Davaa e sua equipe, é claro. Esta seria uma das ironias de um ótimo festival como a Mostra: embora proporcione ao espectador a possibilidade de descobrir, no intervalo de poucos dias, títulos excepcionais de cinematografias raras por estes lados, como as de Taiwan (Dias) e Azerbaijão (Entre Mortes), ele favorece a comparação entre os filmes. Neste caso, o drama convencional da Mongólia sai em desvantagem. Mesmo assim, resta a curiosidade de descobrir o alcance que poderia ter dentro do restrito circuito comercial brasileiro.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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