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Sinopse

Na virada para o século XX, o petróleo trouxe uma fortuna para a nação Osage, em Oklahoma, EUA. A região se tornou uma das mais ricas do mundo da noite para o dia. A riqueza desses nativos, no entanto, atraiu intrusos brancos que manipularam, extorquiram e roubaram tanto dinheiro quanto podiam antes de recorrer ao assassinato.

Crítica

Os indígenas foram muito retratados no cinema norte-americano como um “perigo selvagem”. Principalmente nos faroestes, gênero marcado por heroicos cowboys e mocinhas em apuros, os nativo-americanos foram incontáveis vezes encarados como os vilões inescrupulosos. Poucos filmes observaram a riqueza desses povos desterrados, a isso preferindo enxerga-los como a antítese da civilização. Em suma, foram exceções os westerns clássicos que representaram a dignidade indígena. John Ford dirigiu em 1964 o melancólico Crepúsculo de uma Raça, no qual os Cheyenne marchavam de uma reserva em Oklahoma até o Wyoming, terra natal prometida de volta por um Estado autoritário sem palavra. O mestre Ford, que sempre fez questão de colocar personagens brancos conhecedores das línguas e dos costumes indígenas, deu um passo adiante na sua admiração pelo povo nativo ao levar às telonas a denúncia do governo mentiroso que incentivou genocídios. Com Assassinos da Lua das Flores, o também grande Martin Scorsese trilha um caminho semelhante, mas desta vez escancarando o modus operandi da continuidade do apagamento. O branco dominante e a consequente fragilização do indígena seguem depois que o progresso parecia ter enterrado a brutalidade no velho Oeste. Embora o protagonista seja o ambicioso Ernest (Leonardo DiCaprio), os Osage enriquecidos pelo petróleo são o grande tema, o povo em ascensão econômica meteórica que goza da sensação frágil de independência.

Ernest é o típico novato num território propício a aventureiros em virtude da incrível circulação de dinheiro. Povo indígena também conhecido como NiuKonska ou Ni-U-Kon-Ska (filhos das águas médias, em tradução livre), os Osage aproveitam as benesses proporcionadas pela riqueza fóssil que brota de suas terras. Abastados pelo petróleo abundante, esses nativos levam vidas confortáveis, sobretudo porque mantêm a política da boa vizinhança com William Hale (Robert De Niro), o branco rei pecuarista das redondezas. Assassinos da Lua das Flores é sobre a criação de novos processos para subtrair dos indígenas e continuar o genocídio que parecia ter ficado num passado remoto. O suposto benfeitor amigo dos Osage, que conhece sua língua e seus costumes, é na verdade um gângster disposto a qualquer estratégia capaz de transferir o direito dos povos originários para ele próprio. A primeira cena dessa trama monumental (em duração e escala de produção) mostra um ritual no qual o líder religioso dos Osage menciona com tristeza o fato de os herdeiros mestiços simbolizarem grande risco à cultura indígena, uma vez que provavelmente serão educados com as bases culturais dos brancos e incentivados a ser como eles. Gerando imagens exuberantes e momentos de tensão dignos de sua maestria, Martin Scorsese coloca Leonardo DiCaprio para interpretar o capanga coronelista que tenta manter o status quo, sujeito sem poder de decisão usado como marionete por quem manda de verdade.

A primeira metade de Assassinos da Lua das Flores é caracterizada pela presença abundante dos indígenas em cena. São marcantes os elementos de sua cultura (música, vestimentas, rituais e afins). Sobretudo a partir do momento em que a matança volta a ser sistematizada, a paisagem vai perdendo a diversidade, o que confirma a continuidade do apagamento. A trama escancara os preconceitos étnicos e expõe a vilania dos sujeitos que manifestam a sua admiração pelos indígenas apenas para deles se aproximarem com a intenção de usurpar. Robert De Niro está incrível como o chefe de quadrilha que vende a imagem de protetor local, metodologia semelhantes a dos gângsteres de Little Italy, em Nova Iorque, com os quais Scorsese teve contato na infância – e que seriam recorrentes em seu cinema. Já Leonardo DiCaprio apresenta (de novo) um desempenho notável, aqui como o rapaz que ora obedece cegamente às ordens do “padrinho”, ora demonstra afeto pela indígena que desposou, em parte por interesse amoroso, noutra por senso de oportunidade. Esse caldeirão em ebulição é marcado pela consolidação da submissão indígena à sanha expansionista do branco – situação impressa no semblante carregado da Osage Mollie (Lily Gladstone). Além disso, Martin Scorsese utiliza anacronismos para conjurar o espírito da época, vide as cenas com estética do cinema mudo, as imagens granuladas (simulando a película) e o teatro radiofônico que conta os destinos de todos.

Casada com Ernest, logo próxima à família de usurpadores, Mollie é interpretada de maneira brilhante por Gladstone – trata-se de um daqueles papeis que alavancam carreiras e credenciam a prêmios. Aliás, a derrocada dos Osage é paralela à deterioração física dessa mulher que perde forças por ser gradativamente envenenada enquanto seus pares são manipulados e assassinados. Então, de um lado temos o rapaz que segue os desígnios do tio coronel sem questionar, talvez adotando instintivamente a linha segregadora preconizada por sua família. Do outro, uma Osage que demonstra enorme senso de liberdade ao se envolver amorosamente com quem quiser, no caso o branco de quem assume o sobrenome, mas que perde autonomia e saúde à medida que uma nova onda de assassinatos traz à tona práticas agressivas. Em alguma medida, Martin Scorsese também situa o capitalismo como uma doença autoimune, até porque os Osage começam a colapsar no momento em que adotam as prioridades capitalistas por força do jorro abundante dos seus poços de petróleo. Em quase três horas e meia, Scorsese faz, paradoxalmente, um drama intimista de grandes proporções, enxergando Mollie como vítima de lobos brancos gananciosos que vestem peles de cordeiro para ganhar confiança. Assassinos da Lua das Flores é um retrato ao mesmo tempo grandiloquente e íntimo dessa aniquilação física, emocional cultural à qual os Osage são submetidos. O mestre Ford teria ficado orgulhoso.

Em Assassinos da Lua das Flores a sensação residual de faroeste vai além da disputa territorial e discursiva entre homens brancos e indígenas. Existe um xerife naquela localidade, mas se trata do sujeito exercendo um cargo meramente decorativo (fica implícito que a lei não moverá um dedo sequer para punir o lado mais forte dessa disputa feroz). Há também matadores de aluguel a serviço dos poderosos e fazendeiros que comandam a região como se ela fosse o seu feudo – aliás, a hereditariedade é frequentemente citada como vital às pretensões usurpadoras de William Hale e seus capangas. Por fim, guardadas as devidas proporções, é possível associar os Osage aos cineastas que revolucionaram Hollywood a partir dos anos 1960, entre os quais o próprio Martin Scorsese no início de sua carreira. Dentro dessa perspectiva alusiva, os homens brancos seriam equivalentes aos donos dos grandes estúdios, ou seja, as figuras ladinas que permitem aos novatos/indígenas assumirem o controle para, quando lhes convir, retomar as rédeas da diligência. Ainda dentro dessa perspectiva, os nativos podem ser comparados aos realizadores que renovaram o cinema norte-americano à base da contracultura, mais tarde destronados pelos magnatas que recuperaram o controle quando bem entenderam. Assim, além da empatia diante da tragédia Osage, um forma de respeito estendida a todos os nativo-americanos brutalizados, Scorsese se refere metaforicamente à sua geração nessa obra-prima.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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