Ataque dos Cães
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The Power of the Dog
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2021
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Reino Unido / Austrália / EUA / Canadá / Nova Zelândia
Crítica
Leitores
Sinopse
Phil e George são irmãos, e comandam juntos a fazenda familiar que receberam como herança. Enquanto o primeiro é um patrão tirânico, respeitado pelos funcionários, o segundo tem um temperamento dócil, sendo ignorado pelos pastores e caubóis. Quando George se casa com Rose, uma viúva cujo filho adolescente é considerado efeminado demais para os padrões locais, Phil faz questão de deixar claro que os dois não são bem-vindos na propriedade. Começa uma batalha silenciosa e feroz pelo poder.
Crítica
Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) é um macho alfa. Dono de uma fazenda de gado em Montana, comanda as atividades dos funcionários com mão de ferro. Ele castra os bois sem colocar luvas, recusa-se a tomar banho com frequência, monta cavalos com destreza e demonstra prazer em humilhar aqueles que não o temem. O sujeito fala alto, grita quando lhe convém, ridiculariza garotos fracos. Os rapazes o admiram, as cozinheiras evitam o seu olhar. Em contrapartida, jamais o vemos na companhia de uma mulher. Ele ainda dorme na mesma cama do irmão George Burbank (Jesse Plemons), e passa os dias reverenciando Bronco Henry, seu mentor na arte da cavalaria. Phil preserva a sela utilizada por BH na condição de um tesouro, além do lenço de seda e das revistas do seu antecessor. Pode-se falar em idolatria neste caso: o (anti-)herói serve a relembrar o espectador de que o afeto destes homens se dirige a outros homens. Para eles, as mulheres servem de objeto de conquista, de sexo e de cuidados para a casa. Em contrapartida, admiram tipos viris e fortes como eles próprios se consideram. Não há nada mais homoafetivo, no sentido estrito do termo, do que um grupo de rapazes musculosos tentando provar sua força um ao outro.
Ataque dos Cães (2021) constitui um suspense acerca da masculinidade no imaginário do faroeste norte-americano. Ironicamente, foi preciso uma mulher para se dedicar de maneira tão mordaz a esta desconstrução simbólica: Jane Campion, que mergulha num ambiente erótico, ainda que quase destituído de sexo. Para ela, identidades avessas aos padrões implicam numa afronta aos caubóis, de modo que apenas uma destas formas de existência possa sobreviver ao final — algo que remete aos duelos ao pôr do sol entre homens armados no western tradicional. Phil se sente incomodado pela presença de Peter (Kodi Smit-McPhee), adolescente efeminado, frágil, com paixão pelo desenho e pelas flores. O enteado de seu irmão George é encorajado pela mãe Rose (Kirsten Dunst) a manter o lado criativo, sendo tolerado sem ressalvas pelo padrasto de temperamento dócil. Para Phil, no entanto, o garoto se transforma numa ameaça. Talvez o patrão raivoso forneça uma das melhores representações da homofobia no cinema, por evitar a simples provocação e chacota. O roteiro se dedica à investigação da psique do sujeito mais velho, transtornado pelo garoto magricela e educado. O protagonista nutre uma raiva crescente pela masculinidade diferente da sua, sentindo a necessidade de se impor neste cenário.
Partindo de uma premissa adequada ao drama clássico, Campion privilegia uma atmosfera de tensão em espaços abertos, próxima do horror. Ela evita as noites ameaçadoras, a trilha sonora de violinos estridentes e outros recursos desgastados do medo. Mesmo assim, a espetacular direção de fotografia de Ari Wegner valoriza os cenários e abre os enquadramentos quando a tensão aumenta: Rose se sente ameaçada em casa por Phil; Peter gasta sua energia após uma cena de humilhação com o bambolê; a briga pelo couro das vacas é observada de longe, através da porta de vidro. Os espaços parecem grandes demais para estas pessoas de comunicação limitada e rancores reprimidos, prestes a explodir. O roteiro permite que os objetos de tensão se desenvolvam, se repitam, produzindo um desconforto sufocante: vide as sequências envolvendo a apresentação ao piano, o coelho e a corda trançada. A cineasta sabe trabalhar a duração das sugestões: graças à demora em elementos simples, somos levados a suspeitar que possuam alguma função para além de sua utilidade imediata — pela repetição da imagem da corda, compreendemos que ela servirá a propósitos distintos adiante. Do mesmo modo, quando se mostra Rose ao piano por um olhar distante, imaginamos que alguém a observa. Wegner efetua curiosos movimentos de distanciamento da câmera (ao invés do zoom out) quando os conflitos se acirram, e depois caminha lentamente para a frente quando se resolvem. As escolhas de ritmo, enquadramento e duração de planos refletem o tratamento impecável da fotografia e da edição de Peter Sciberras.
Assim, o longa-metragem investe no subentendido, aquilo de que ninguém fala, porém se encontra na cabeça de todos: o sexo escondido, a embriaguez ocultada, a homossexualidade disfarçada, a competição velada. Há ferozes confrontos de olhares entre Phil e Peter, ou Phil e Rose, tornando os diálogos dispensáveis: basta enxergar o rosto dos protagonistas para descobrir suas intenções. Esta “família tradicional” de 1925, representando a América profunda, confronta-se à realidade por trás das aparências. O roteiro encontra a potente metáfora da contaminação para sugerir um mal que se impregna nos quatro heróis de maneira irremediável — a trama nunca oculta seu teor trágico. O título provém dos Salmos, 20:22: "Livrai a minha alma da espada, e o meu ser, do ataque dos cães”, evocando a força maligna e inesperada, corroborada pela sombra de cachorros na geografia das montanhas. A partir do livro de Thomas Savage, a cineasta busca uma saída simbólica, de ordem moral, ao confronto entre a masculinidade e a feminilidade de dois homens. Qual deles seria, afinal, o cão infiltrado na família? Aquele que chega posteriormente, trazendo a modernidade, ou o homem conservador, que despreza os novos habitantes da casa? A religiosidade e a noção de virtude são postas à prova.
No elenco, os ótimos atores se deliciam em personagens com amplas transformações: Benedict Cumberbatch, impecável em sotaque americano, transita da crueldade à fraqueza e à sensibilidade; Kodi Smit-McPhee elabora um aspecto efeminado com grande respeito, até revelar as vantagens perversas de ser considerado inofensivo; e Kirsten Dunst parte da posição da vítima à mulher potencialmente paranoica — o trabalho de corpo e as expressões durante a sequência do piano são assombrosos. Aliás, é ela quem profere a frase "Ele é apenas mais um homem", irônico mantra do projeto como um todo. Apenas Jesse Plemons, ator de talento expressivo, recebe um personagem superficial em comparação com a trinca ao seu redor. O filme termina por aliar religiosidade e sexualidade de maneira tão perversa quanto psicologicamente complexa, remetendo a excelentes obras dos últimos anos como Trama Fantasma (2017) e Fé Corrompida (2017). Jane Campion desenha a construção e desconstrução da masculinidade tradicional sem qualquer viés de revanche ou punição, apenas um olhar clínico à retórica do discurso do macho, e suas fragilidades face à pluralidade do desejo. Aqui, são os animais que sangram, têm suas peles cortadas e órgãos retirados, porém os humanos perecem e se destroem por dentro. A fortíssima conclusão serve de happy end ao avesso, na compreensão de que a libertação de uns implica na aniquilação do outro. Diante da fobia e do ódio, não há possibilidade de reconciliação.
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Puxa, que enorme filme! Nada esperado o desenlace final deste e todos os personagens são extremamente bem caracterizados, seja em suas índoles como em seus exteriores. Complexidades e tramas típicas de seres humanos - mormente em épocas onde a diversidade é posta em panos quentes. Trilha altamente envolvente que pontua dramaticamente toda a película. Merecida nota máxima!
Como um crítico de cinema pode entender tão mal p filme?
Simplesmente fantástica a sua crítica. Surpreendente!
Parabéns Bruno Carmelo, excelente comentário, dando atenção a todos os detalhes do excelente filme, muito bom filmes que nos fazem pensar, que não entregam tudo facilmente, obrigado,.
Preciso, enxuto! As falas dos personagens são repletas de silêncio potente que nos conduzem, plateia, a seguir com todo suspense que causam. A presença da montanha, dos cavalos, dos olhares nos brindam com a satisfação que a arte é capaz de nos ofertar. Camadas de compreensão sobre as masculinidades tóxicas brilhantemente ficam reverberando em nós ao fim. E seguem conosco, obrigada Jane Campion e todo elenco.
Uau! Este é minha opinião sobre esta sua crítica. Congratulações pela sua perspicácia.
O filme prende a atenção pelo subjetivo implicado e pelo trabalho magnífico de direção, fotografia, tempo, métrica...Bruno Carmelo traduz absolutamente tudo de forma poética...
Filmaço. Admiro muito a construção dos personagens, e de como o jogo inverte e a força, necessariamente, não está em quem se mostra como personagem alfa, mas naquele que está confortável na própria pele. A cena da caminhada de Peter (quase um desfile) no acampamento, com toda serenidade que provém da força interior, além de um ponto de virada no filme, pra mim, é muito linda de se ver.
Que música é essa? Escreva nos comentários por favor se souber! Rose Gordon (Kirsten Dunst) toca piano e Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) toca banjo ao fundo. Uma curiosidade sobre essa cena: Kirsten incomodou seus familiares para aprender essa música para o filme.