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Sinopse

Maren é uma jovem tentando compreender a sua natureza. Ela é uma Devoradora, alguém que precisa se alimentar periodicamente de carne humana. Largada à própria sorte, ela vai começar uma jornada de autoconhecimento.

Crítica

Quem diria, um coming of age literalmente antropofágico. Assim podemos definir esse filme de amadurecimento incomum, no qual o cineasta Luca Guadagnino observa as andanças de canibais autodenominados Devoradores. A protagonista é Maren (Taylor Russell), adolescente que está tentando se enturmar, como convêm aos que se mudaram há pouco para uma nova cidade. Depois de sair de casa sem pedir permissão, ela dilacera a mordidas o dedo da colega com quem conversava e volta ensanguentada pedindo socorro. O pai interpretado por André Holland não perde tempo. A dinâmica que vem logo a seguir sugere a existência de um protocolo, o que, por sua vez, deixa implícito que esse tipo de situação deve ter acontecido outras vezes, sendo o motivo do nomadismo da dupla. Quando mencionamos “canibalismo”, imediatamente somos arremessados à seara do horror. Porém, o realizador não faz do gênero o dominante dessa produção visual e dramaticamente corajosa. Estamos diante de uma história com importantes toques terríficos, que não poupa o espectador de banquetes macabros, mas orientada principalmente pela melancolia intrínseca aos dramas sociais. A necessidade de devorar carne humana é o aspecto da natureza das pessoas envolvidas que as desencaixa da normalidade. Então, o dilema é: conviver com a diferença ou reprimir o que define essa gente?

Maren é a típica jovem que precisa ser guiada pelos caminhos de um mundo novo. A fita cassete deixada pelo pai é um dispositivo utilizado no que tem de mais comum e funcional: serve para a protagonista receber acesso resumido ao passado parcialmente escondido dela. E nesse filme de estrada, Maren tem ao menos dois encontros definidores. O primeiro deles é com o peculiar Sully (Mark Rylance), Devorador experiente que introduz a menina nessa realidade e, de certa maneira, a ensina como desenvolver estratégias para sobreviver. Apesar do pouco tempo em que os dois interagem, é gerado um vínculo semelhante ao dos mentores e pupilos. Mais à frente, Maren se depara com o selvagem Lee (Timothée Chalamet), um Devorador menos sistemático e mais intuitivo. A experiência e o frescor da juventude, naquilo que ambos têm de positivo e negativo. Portanto, Luca Guadagnino coloca essa menina na estrada (local definido pelo deslocamento e propício ao acúmulo de experiências) guiada por homens distintos, de naturezas similares à sua, o que torna a sua educação sentimental mais rica. Em certa medida, o filme lembra muito Terra de Ninguém (1973), de Terrence Malick, em que uma dupla de jovens (vivida por Martin Sheen e Sissy Spacek) também se descolava das figuras de autoridade para explorar recantos melancólicos e decadentes dos Estados Unidos em busca de suas identidades.

Até os Ossos é um filme em que o drama e o romance se interpenetram, no qual o horror serve mais como manifestação literal de algo ligado a uma natureza desviante. Enquanto transitam pelas estradas dos Estados Unidos, Maren e Lee oscilam entre a euforia da liberdade aparentemente incondicional e os dilemas morais que sobrevêm a determinadas decisões e ações. Diferentemente dos vampiros, os Devoradores não se alimentam apenas de carne humana, mas precisam ingeri-la com alguma frequência. Quando é chegada a hora de recorrer ao ato de “matar para sobreviver, Luca Guadagnino faz questão de mostrar o casal arrancando pedaços das vítimas e posteriormente empapados do sangue alheio. E há um aparente critério para escolher as vítimas: pessoas que demonstram algum nível de crueldade e que, de preferência, não tenham familiares, filhos ou cônjuges que delas sintam falta. O filme não mergulha nas entranhas desse procedimento que acaba acentuando a mensagem romântica do filme – afinal de contas, os dois Devoradores não matam desconhecidos com laços afetivos em voga. Mas, quando acontece algo fora dessa curva, Guadagnino cozinha suficientemente questões como culpa que decorre da imprudência. Então, estamos de uma história clássica de amadurecimento, compassadamente na estrada, com personagens que comem carne humana.

Luca Guadagnino mantem uma atmosfera de estranhamento por não deixar o filme descambar totalmente ao terror, sendo os elementos desse gênero como especiarias temperando uma estrutura narrativa utilizada anteriormente à exaustão. Mark Rylance reivindica a sua participação na próxima temporada de prêmios com o personagem de voz mansa e comportamento ambíguo. Timothée Chalamet está ótimo como sempre, agora na pele do rapaz que criou uma casca de bad boy para sobreviver ao mundo que o receberia como aberração se soubesse do que ele realmente é feito. E Taylor Russell cumpre com louvor a missão de interpretar a protagonista impetuosa em busca de um lugar para si enquanto transita acumulando experiências, tentando conciliar necessidades pessoais e expectativas coletivas. É um prato cheio para os psicanalistas/psicólogos de plantão a existência de determinadas dinâmicas, tais como o humano “normal” que mimetiza o amigo (ou namorado) Devorador – participação especial de Michael Stuhlbarg como o típico white trash norte-americano –; alguém que consome o próprio pai depois de uma briga ocasionada por embriaguez; o sujeito degolado enquanto goza (e o período imediatamente após o orgasmo é também chamado de “pequena morte”); e o pedido de um amante para que a outra o devore num banquete entre lágrimas e êxtase. Quem diria, um coming of age literalmente antropofágico. E que funciona muito bem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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