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Sinopse

Eulália, uma mãe conservadora de 65 anos, descobre que o filho que emigrou para a Alemanha se tornou Fostter Riviera, o primeiro ator pornô gay português premiado internacionalmente. Chocada e enojada, porém querendo entendê-lo, ela embarca em uma jornada emocional que põe à prova seus valores, expectativas e percepções.

Crítica

Poucos filmes com “pornô” no título conseguem ser tão comoventes quanto este documentário português. Desde o cartaz, focado no rosto de uma senhora idosa, percebemos que esta não será a típica representação do universo da pornografia pelo ponto de vista de seus atores-fetiche. Para retratar a ascensão de Sydney Fernandes, conhecido pelo nome artístico Fostter Riviera, o diretor Jorge Pelicano decide acompanhar a jornada de aceitação da mãe dele, uma senhora católica que passa os dias dentro de casa tendo que lidar com o misto de amor e asco que sente pelo filho. Eulália se considera de certo modo responsável pelos rumos do filho, enquanto este faz questão de frisar sua independência nas escolhas profissionais. Ela quer se aproximar, até demais. No entanto, como cada aproximação é carregada de julgamentos moralistas, ele se afasta. Eles se amam, mas não se entendem.

Cria-se portanto uma história de amor entre mãe e filho, e também uma alegoria da difícil conciliação entre o conservadorismo – a mãe dona de casa, defensora da submissão feminina ao marido – e o mundo contemporâneo, representado pelos show de sexo de Sydney, misturando a pessoa real com a persona fictícia que ele ostenta diariamente via redes sociais. Cabe à mãe observá-lo por Facebook, Instagram e afins, promovendo seus próximos shows de sexo ao vivo, com fisting e dupla penetração. Eulália, mãe amorosa, passa as tardes assistindo a cenas de sexo gay, como forma tragicômica de se sentir perto do filho que mora em outro país. Na impossibilidade de conviver com a pessoa real, convive com a com a representação imagética dele. Pelicano faz questão de frisar o tempo gasto por esta mulher assistindo a vídeos pelo computador, enquanto as apresentações do filho são refletidas nos óculos de aro grosso.

O documentário aproxima-se com frequência do humor. Há algo inerentemente absurdo nesta premissa (a mulher idosa chorando de saudades diante de um ménage à trois), e seria fácil para o diretor, e para a montagem, em especial, aproximar estes momentos com finalidade cômica. Ora, Pelicano demonstra profundo respeito por ambos os lados da relação, privilegiando o tom melancólico. Uma narração vaporosa, triste, sobrepõe-se a imagens de um metrô caminhando por túneis escurecidos, proporcionando uma impressão de “voz da consciência”, como se Eulália falasse a si mesma. O roteiro faz questão de desenvolver a psicologia dele e dela: no caso de Sydney, o sentimento de não pertencimento por ter sido adotado na infância, por ser gay e por ter nascido em outro país, no caso dela, a sensação de culpa devido à pressão dos familiares para abandonar o filho. Ao invés de uma trajetória de desejos pulsantes, a narrativa carrega uma tristeza profunda.

Esteticamente, Até que o Pornô nos Separe demonstra tamanho controle estético que se assemelha à ficção. As câmeras se encontram ao mesmo tempo com a mãe e o filho, buscando sempre o melhor enquadramento quando Eulália conversa com familiares ou quando Sydney discute com a irmã via telefone celular, deitado na cama. Algumas cenas são tão fortes, e convenientes à trama, que parecem orquestradas: a música escutada na rádio, com a letra “Deus ouviu as minhas preces e me deu um filho encantador”, as ligações telefônicas com som impecavelmente captado dos dois lados da linha. Pela presença das câmeras no exato instante em que Eulália assiste a uma entrevista do filho, ou quando o visita numa feira pornográfica, a câmera se aproxima de uma sensação de onipresença típica da ficção. No entanto, mãe, filho e demais familiares conversam com tamanho despojamento que jamais soam como atores entoando um texto. Pelicano obteve tão grande intimidade com os personagens que se tornou capaz de filmá-los de perto sem prejudicar a naturalidade das interações.

Resta uma crônica interessante sobre as raízes familiares e sociais da homofobia, e a nossa dificuldade de lidar com a autonomia do corpo. Para Eulália, o corpo é sagrado; para Sydney, o corpo é uma festa. Ela acredita num sentimento de honra perante à sociedade; já ele, no imperativo do hedonismo. O embate entre pornografia e cristianismo torna-se uma maneira de demonstrar como a polarização de pontos de vista pode estar mergulhada em afetos. Rumo ao final, a senhora idosa decide que precisa ver o filho “performar” ao vivo, para o desespero dele. Mas é ela quem precisa sair do armário, como Eulália ressalta: é necessário aceitar o fato de ter um filho gay, ator pornô, que passa os dias descrevendo suas proezas eróticas. O filme acompanha com otimismo a possibilidade de reaproximação entre dois mundos antagônicos. Assim, dentro de um pequeno núcleo familiar, torna-se sintomático de ideologias que se confrontam tão violentamente no século XXI.

Filme visto no 27º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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