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Crítica


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Sinopse

Ruby acorda presa num porão. Com as pernas quebras e desmemoriada, ela tem à sua frente apenas Tom, o sequestrador. Ele, por sua vez, diz que a soltará apenas quando ela se apaixonar por ele.

Crítica

Talvez o pior dos filmes não seja, necessariamente, aquele mal feito, que denota falta de prática e pouca experiência do realizador. Muito pelo contrário, são aqueles aparentemente bem acabados, mas dotados de interesses perniciosos por trás de suas motivações, os que realmente merecem maior atenção, até para serem evitados a todo custo. Como é o caso desse Até que Você me Ame, que já se mostra complicado desde os primeiros instantes, mas, a partir do desenrolar da trama – felizmente curta, com apenas 77 minutos – só vai deixando o quadro cada vez mais problemático. E o que mais causa espanto é a total ausência de consciência demonstrada pelo cineasta Edward Palmer, que parece realmente acreditar no seu filme, defendendo-o mesmo diante das situações mais... por assim dizer... indefensáveis. E se ele não tem noção da tragédia que gerou, é responsabilidade de qualquer um que se dedique a se confrontar com seu trabalho alertá-lo a respeito do quão equivocado está em propor tal visão.

É dever de qualquer crítico de cinema evitar ao máximo revelar spoilers em seus textos. Adiantar revelações importantes e detalhar antecipadamente reviravoltas cruciais para o andar dos acontecimentos não só é limitador para a fruição da audiência, como também revela incapacidade do redator em aprofundar sua reflexão além do desmembrar da sinopse. Por outro lado, há certos títulos que se apoiam quase que exclusivamente nestas mudanças de perspectiva, engessando sua narrativa de tal forma que torna os esforços daqueles encarregados de se debruçarem sobre o discurso proferido um beco sem saída, como se qualquer caminho a ser trilhado acabasse passando, invariavelmente, por essa ou aquela questão mais pontual. Palmer faz isso com seu filme. A partir do uso do título original – Hippopotamus, ou Hipopótamo, que só se explica pela confusão pueril da protagonista com o termo hipocampo – até a estrutura escassa escolhida – há apenas quatro personagens em cena, sendo que dois aparecem apenas por breves momentos, deixando à dupla restante a tarefa de conduzir praticamente sozinhos a história – sua visão bastante restrita de cinema termina por também contaminar qualquer reflexão a respeito do conjunto, por mais infeliz que esse seja.

Olá. Meu nome é Thomas Allcroft. Eu a sequestrei, e a deixarei presa aqui até que você me ame”. Essa declaração, por si só imensamente perturbadora, é repetida à exaustão por quase toda a primeira metade da história. Ruby (Ingvild Deila, que viveu rapidamente a Princesa Leia em Rogue One: Uma História Star Wars, 2016) acorda em uma sala fechada e asséptica, com poucos móveis e na qual tudo que está ao alcance do seu olhar é branco. Para piorar, seus joelhos estão enfaixados, e a justificativa que lhe é dada pelo estranho à sua frente é assustadora: “seus ligamentos foram cortados para você não fugir. Se não mexer, com o devido tempo estará boa novamente”. O responsável por isso é o citado Tom Allcroft (Stuart Mortimer, que acaba sucumbindo aos trejeitos que lhes são impostos pelo roteiro circular), rapaz bem-apessoado que se declarada apaixonado por ela e que essa atitude radical, supostamente, seria a única maneira deles ficarem juntos. O que há lá fora? Por quê tentaram um relacionamento pelos formatos tradicionais? E o mais importante: o que ela lembra de sua vida anterior?

É quando se chega ao verdadeiro ponto de virada. Afinal, talvez a melhor maneira de descrever Até que Você me Ame é defini-lo como o resultado da cruza de Como Se Fosse A Primeira Vez (2004) com O Quarto de Jack (2015). Ou seja, é como se Adam Sandler, sabendo da condição particular de Drew Barrymore, que perde a memória toda vez que vai dormir, decidisse ajudá-la trancando-a em um quarto fechado, afastada de tudo e todos, se munindo da certeza insana de ser o único capaz de curá-la – felizmente, não há nenhum Jacob Tremblay por perto. Palmer – reforçando: além de dirigir, ele também escreveu o roteiro, que por sua vez é baseado num curta-metragem homônimo que ele e seus dois protagonistas realizaram em 2015, ou seja, para piorar tudo, os três se envolveram com essa mesma catástrofe por duas ocasiões distintas – chega ao absurdo de misturar estupro e sequestro no mesmo balaio, como se fosse possível estabelecer uma ordem agravante de agressões, afirmando que “essa aqui é horrível, mas aquela ali foi feita em nome do amor, então está tudo bem”. Como um texto desse chega a ser aprovado e levado adiante até se transformar no filme que agora se apresenta parece ser o maior mistério de todos.

Mas as desgraças continuam. Há de se imaginar que a partir de determinado momento, na ânsia de estender uma narrativa que não teria mais para onde seguir, Palmer decide investir em outras mudanças de rumo aleatórias, chegando ao extremo de transformar a vítima em vilã – “como ela foi capaz de fazer tal coisa, afinal, ele só queria ajudá-la?”, pensarão os mais ingênuos ou desatentos. E como se não bastasse uma surpresa apenas, eis que mais uma se manifesta, mostrando que o cão louco só larga a ovelha após ser abatido, e nunca por cansaço. Até que Você me Ame é errado em seus conceitos, propósitos e intenções. É um filme que vai até o último instante defendendo uma ideia ultrajante, e assim o faz com a convicção de estar munido de razão, sem perceber a gravidade do seu engano.

Filme visto online durante o 7o BIFF: Brasilia International Film Festival

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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