Crítica
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Crítica
A porta de entrada para este documentário consiste no exotismo: não estamos acostumados a ver pessoas idosas e religiosas gerenciando uma loja de produtos pornográficos gays. O olhar da alteridade produz um filão específico que se diverte com a ideia de pessoas idosas cantando música pop (Young @ Heart, 2007), vendendo drogas (Paulette, 2012), dançando como cheerleaders (As Rainhas da Torcida, 2019) e tendo uma vida sexual ativa (Um Senhor Estagiário, 2015). É fácil cair na mera constatação da diferença, ou seja, no discurso paternalista de que estas pessoas estão fazendo algo que não deveriam. O simples fato de rirmos do comportamento alheio reflete nosso preconceito prévio e nossa conformidade às regras sociais. Atrás da Estante (2019) se depara com a armadilha de ridicularizar o casal Karen Mason e Barry Mason por sua atividade. Outro perigo, inversamente proporcional porém fetichista na mesma medida, seria transformá-los em heróis da resistência por venderem produtos que poucas pessoas ousariam negociar.
Felizmente – ou infelizmente, vai saber – o projeto é dirigido pela filha do casal, Rachel Mason. A cineasta tem respeito pelo percurso dos pais, talvez por ela mesma pertencer a um grupo queer e progressista. A diretora conviveu com outras formas de sexualidade e gênero enquanto crescia e, embora tenha demorado para descobrir o ramo exato em que os pais trabalhavam (“Eles têm uma livraria”, dizia quando criança), sempre se sentiu inserida numa cultura underground. Por isso, as conversas com os pais são francas, mas também despojadas, enquanto estes cozinham ou passeiam pela casa. O caráter formal ou explicativo desaparece: o documentário tem pouco interesse em trazer dados, porcentagens, citar grandes nomes da indústria pornográfica. Ele possui ambições muito mais modestas, e também mais afetuosas, no caso, equivaler a pornografia a um produto comercial qualquer. A loja não se torna diferente de qualquer outro serviço feito para garantir o sustento da família – mesmo uma família religiosa de raízes conservadoras. Partindo da dinâmica improvável dos pais, Rachel Mason busca nos convencer de que aquelas pessoas formam uma família como qualquer outra.
Em diversas passagens, Atrás da Estante corre o risco de soar moralista. Afinal, Karen e Barry fazem questão de frisar que nunca assistiram aos filmes pornográficos que vendiam – nem mesmo aqueles que vieram a produzir, em velocidade espantosa, no auge dos negócios. Além disso, o imperativo do capital surge em cada cena que os protagonistas buscam se “desculpar” por negociarem produtos “obscenos”. Eles justificam com a lógica de “são apenas negócios”, e que enriquecer consiste num objetivo bastante louvável dentro dos Estados Unidos da América. Quando confrontados a questões morais, os protagonistas se convertem em empresários que souberam explorar um nicho de forte potencial de público. Ao menos, o possível distanciamento conservador da cultura LGBT se atenua através das amizades do pai e da mãe com os funcionários gays, muitos deles mortos pelo HIV, e através da eventual aceitação do filho gay. Mason traça uma lógica curiosa, buscando mostrar que a religiosidade da mãe a nutriu tanto de preconceitos quanto de aceitação ao próximo. Existe muito carinho pelos personagens, por uma época específica da cultura pornográfica e mesmo pelos vídeos hardcore de sexo gay. É compreensível que o casal observe de maneira melancólica o fim da era das videolocadoras que leva ao fechamento da Circus of Books. As cenas de capas de filmes com pênis e corpos musculosos se tornaram uma decoração rotineira para o casal.
A diretora poderia tirar proveito ainda melhor do cenário à disposição. No entanto, preocupa-se em não excitar o espectador, falando sobre pornografia sem ser pornográfica por si mesma. Ao entrar na loja, a câmera na mão treme excessivamente, desfoca a capa de um filme softcore, trabalha com cenas iluminadas demais e mal enquadradas. Mason percorre com pressa aquele local onde seria tão fácil montar uma luz apropriada, colocar um tripé ou buscar algum tipo de estabilizador. Percebe-se que o cenário proibido de sua infância ainda a perturba, e talvez nesse aspecto o projeto encontre um valor involuntário: na relação da própria cineasta com essa “pornografia familiar”. Há diversas inversões de valores que Mason trabalha, conscientemente ou não: a filha que detém poder sobre os pais (afinal, é ela que controla a câmera e o discurso), a garota heterossexual olhando para a cultura gay, a nova geração discorrendo sobre os problemas sociais de gerações passadas. Rachel Mason pertence àquele ambiente onde cresceu, mas ao mesmo tempo não pertence, por ter sido jovem demais, sem capacidade de compreender a pornografia, o HIV, os negócios. A narrativa se converte numa terapia familiar bem-vinda por sua transparência.
Talvez o resultado possa ser criticado pelo ponto de vista: trata-se da cultura LGBT vista por um casal heterossexual. Os gays são tratados como consumidores, ou ainda objetos de estudos vistos por terceiros – seja os compradores pelo olhar dos comerciantes idosos, seja o irmão gay pelo olhar da irmã diretora. Teria sido mais nobre, e politicamente relevante, deixar que os gays contassem essa história por si mesmos, mas talvez o documentário seja feito também para heterossexuais, a quem se espera uma trajetória de sensibilização análoga à de Karen e Barry. A metáfora sobre toda a família precisando “sair do armário” (os protagonistas viviam escondendo seu laço com a pornografia assim como os gays viviam escondendo sua orientação sexual) soa equivocada, visto que o preconceito contra um casal branco e religioso jamais será comparável à perseguição contra gays, lésbicas, travestis e drag queens, por exemplo. No entanto, o documentário se beneficia da normalização do olhar ao sexo entre dois homens, tratado como prática comum, vendável, e existente na sociedade como qualquer outra. A cineasta traz um discurso amoral (ou seja, sem moral) sobre este tema, algo notável em comparação com projetos tão emotivos em defesa das minorias. O filme não precisa se aprofundar na perseguição religiosa nem no preconceito dos vizinhos, restringindo a aceitação a uma questão individual de bom senso e boa vontade. A simplicidade ao registrar tantas capas de filmes pornôs carrega, em si, um discurso válido no que diz respeito ao olhar da alteridade.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 6 |
Francisco Carbone | 5 |
Robledo Milani | 5 |
MÉDIA | 5.3 |
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