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Sinopse

Jorge trabalha como investigador na cidade. Um dia, é encarregado de pesquisar sobre uma morte suspeita na cidadezinha das redondezas, envolvendo uma garota adolescente. Chegando ao local, percebe a dificuldade dos moradores em abordarem o assunto. Conforme avança na investigação, Jorge descobre os segredos daquele local e percebe uma inesperada ligação com sua própria história.

Crítica

Atrás da Sombra (2020) leva um tempo considerável até se apresentar enquanto suspense ou terror. O investigador Jorge (Bukassa Kabengele) é visto inicialmente à mesa, lidando com a papelada diária, filmado em luz natural, em planos de conjunto comuns. No ponto em que a maioria das produções de gênero começaria a introduzir músicas tensas ou algum gesto ambíguo, preparando o espectador ao teor sombrio por vir, o diretor Thiago Camargo investe na linguagem realista. Um dos melhores aspectos deste projeto brasileiro se encontra no trabalho do tempo, ao conceber o suspense como decorrente da construção dos personagens, ao invés de um teor forçado externamente aos mesmos. Ou seja, não adiantaria incluir silhuetas macabras passando ao fundo do corredor se ainda não compreendemos os medos do protagonista, nem a relação dele com a figura assustadora. Por isso, o diretor evita a maior parte dos sustos fáceis e dedica cerca de metade da narrativa à aproximação lenta entre o natural (a rotina de Jorge na cidade, suas dificuldades financeiras) e o sobrenatural (a floresta sombria de uma cidadezinha de Goiás, a presença de fantasmas).

O cineasta evita o caráter espetacular habitual em produções sobre homicídios, segredos em uma cidade perigosa ou aparições inexplicáveis. Por mais que o presente e o passado sejam conectados apenas pela montagem, ao invés da narrativa (os pesadelos em flashback se alternando com a investigação criminal no presente), percebe-se a maneira parcimoniosa com que estes dois mundos se encontram. Os diálogos são naturais, ora meio truncados, ora mal articulados pelos atores (em reprodução do registro oral comum), enquanto se nota o esforço em construir casas realistas, refeições verossímeis de famílias de classe média-baixa, e figurinos simples, porém não miseráveis. Camargo evita o fetiche da miséria e da morte: não há prazer em construir a violência, nem o desejo mórbido de explorar o corpo de uma jovem assassinada. Menos do que pudor, percebe-se o respeito do diretor com um trauma pessoal, além de uma predileção pelas sugestões ao invés das cenas de impacto. O longo momento em que Valtim (Allan Jacinto Santana) observa o novo hóspede Jorge, recusando-se a sair da porta do quarto, transmite uma interessante mistura entre ameaça, curiosidade e possível desejo sexual. As aproximações dos coronéis da cidade, interpretados por Stepan Nercessian e Zécarlos Machado, carregam o tom de ameaça velada diluída em camaradagem, o que torna o local ainda mais sombrio para o protagonista.

O cuidadoso jogo de insinuações e silêncios poderia ser aprofundado pela estética, sobretudo através do trabalho de som. Jorge passeia por ruas vazias praticamente sem barulhos (de animais, pessoas, carros), enquanto os diálogos se passam em ambientes hermeticamente isolados. A floresta traz os ruídos aguardados, mas seria importante levar a riqueza sugestiva à banda sonora, mesmo nos trechos realistas, através da dissociação entre som e imagem ou da exploração do espaço fora de quadro. Em paralelo, a montagem dilata as cenas, como se começasse e interrompesse cada sequência um segundo além do início e término das ações. Com exceção das entradas no carro, quando a montagem efetua uma rápida colagem entre sentar no carro, colocar o cinto de segurança, pisar no acelerador e arrancar, as demais cenas ocorrem com excessiva placidez. A montagem poderia ganhar em dinamismo caso apostasse em outras formas de articulação das imagens para além dos planos e contraplanos e das irrupções bruscas de pesadelos na floresta – sobretudo diante de tantos planos fixos com personagens imóveis dentro do enquadramento. Mesmo assim, nota-se o cuidadoso trabalho de iluminação, simples e verossímil, além da representação verossímil da floresta, algo notável dentro do gênero fantástico.

Em termos narrativos, Atrás da Sombra entrelaça os elementos clássicos de terror com uma narrativa especificamente brasileira, abordando o “jeitinho” e a corrupção das classes altas nas pequenas cidades. Talvez o filme obtivesse um efeito ainda mais assustador ao abandonar as figuras-chave da feiticeira mística e sábia (Elisa Lucinda), da menina bonita e virginal, sacrificada pelos homens (Bruna Brito), além dos repetidos símbolos escondidos e rituais dentro da floresta. Haveria outra maneira de representar o misticismo, especialmente no centro-oeste brasileiro, para além dos chavões universalizantes, consagrados pelo terror norte-americano. Mesmo assim, ele desenvolve estes símbolos com parcimônia, sem sublinhá-los em excesso, enquanto faz uso comedido dos recursos de maquiagem e efeitos especiais. O projeto demonstra plena consciência de seu porte de produção, adaptando as imagens sob medida. Assim, evita a armadilha de tantos filmes de terror brasileiros recentes, como O Amuleto (2014), Através da Sombra (2015), O Caseiro (2015), O Juízo (2019) e Macabro (2019), que privilegiam as sensações à construção dos personagens, enquanto escancaram as limitações de seus efeitos visuais, filmados com uma frontalidade excessiva. “Os melhores filmes de terror são, em primeiro lugar, bons dramas”, lembravam os diretores Dennis Widmyer e Kevin Kölsch em entrevista recente. Camargo aposta no mesmo caminho.

Ao final, opta-se por um caminho modesto, quase anticlimático de resolução dos conflitos, como se o projeto recusasse a típica recompensa emocional, mesmo nos instantes finais. Haveria maneiras mais potentes (talvez metafóricas e criativas) de encerrar a jornada de Jorge, assim como resoluções mais incisivas ao conflito político daquela região – onde se enfrentam, silenciosamente, os homens ricos e brancos contra os cidadãos negros e pobres, as alternativas da lei contra os caminhos da bala, a justiça contra a vingança. O discurso poderia esclarecer o posicionamento ambíguo entre apoiar e observar a trajetória vingativa. No entanto, o filme representa um avanço notável entre as produções brasileiras contemporâneas de terror, graças ao equilíbrio entre razão e emoção, e à utilização moderada de recursos sensacionalistas. O terror sobrenatural, especialmente aquele focado em florestas sombrias e fantasmas do passado, tem sido confinado aos sustos, tentativas de choque e medo. O projeto nacional rompe com esta representação de modo ainda tímido, porém notável dentro da nossa cinematografia. O diretor desperta curiosidade para os próximos projetos, possivelmente mais ousados no trabalho de gênero e na construção de metáforas visuais.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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