Sinopse
Crítica
Koffie (Marc Zinga) é um homem congolês que refez a vida na Bélgica – nação colonizadora de sua terra natal. Considerado de mau agouro por seus familiares, então marcado pela crendice local, ele teve de migrar para se afastar do rótulo imposto como uma chaga aberta. Anos depois, decide voltar para casa a fim de pedir a benção dos pais, principalmente porque está prestes a testemunhar o nascimento de seus primeiros filhos e os quer conectados com suas raízes. Estamos diante de um protagonista motivado pela vontade de pertencer, talvez para não perder a essência. E isso fica evidente nos seus esforços desproporcionais para se adequar aos costumes que não estão dentro dos parâmetros regentes de seu cotidiano. Koffie tira o cabelo estilo black power e está disposto a pagar o dote tradicional em sua região para sacramentar o casamento, mesmo que não acredite em nada disso. Afinal de contas, Koffie deixou tudo para trás quando foi forçosamente embora. Escolhido pela Bélgica para representar o país no Oscar 2024, Augúrio mostra os esforços desse sujeito para se reconectar com a família que o preteriu em função do conjunto de superstições que o engolem gradativamente, ao ponto de não ser possível distinguir a realidade concreta do realismo fantástico. À medida que adentramos nesse universo repleto de elementos sagrados e dogmas rigidamente impostos, percebemos que as divisas são difusas.
Nos primeiros minutos, o rapper e MC Baloji, aqui debutando como realizador de longas-metragens, até ensaia demarcar as fronteiras entre os fatos e a dimensão mágica alimentada pela crença. Ao chegar ao Congo na companhia da sua esposa, a belga Alice (Lucie Debay), Koffie é estranho àquele lugar no qual repousa a sua ancestralidade. Ao pedir informação para rapazes estagnados num acostamento, é observado como se fosse (e é) forasteiro, alguém que não pertence àquele lugar. E o preço cobrado para caber novamente nesse universo é aceitar o que dele existe de fantástico. Em princípio, há o horror pelo fato de uma das irmãs se sentir ofendida diante de um sangramento nasal corriqueiro – crente de que ele é um feiticeiro, ela presume que o sangue respingado no filho é uma forma de maldição. Baloji enfatiza a perspectiva do descrente, daquele que (assim como boa parte da plateia) estranha a reação desproporcional da mulher aos gritos vociferando contra o irmão recém-chegado depois de tanto tempo. Porém, aos poucos, o cineasta vai tornando indiscerníveis os âmbitos reais e irreais, os mesclando numa trama que reivindica uma natureza alegórica. Chega um ponto em que simplesmente fica impossível determinar o que aconteceu daquilo que possivelmente tenha sido elaborado metaforicamente como estratégia para lidar com a dureza das vidas repletas de contratempos.
Visualmente falando, Augúrio é um filme impactante pela forma como utiliza os elementos ritualísticos congoleses, também em virtude da capacidade de situar componentes excepcionais em rotinas ordinárias e vice-versa. Como quando somos apresentados à gangue de meninos agressivos trajados com vestidos rosas alusivos aos das princesas dos contos de fadas. Aliás, é justamente a partir da reprodução de uma versão local da fábula de Joãozinho e Maria que o filme mergulha de modo ainda mais radical nessa junção entre real e fantástico. Será que o menino elaborou o conto macabro para melhor lidar com a morte trágica da irmã pequena ou o encontro com uma bruxa doceira é mais próximo do efetivo do que poderíamos imaginar? Baloji utiliza com inteligência a mitologia dentro de uma história em que a banalidade do cotidiano é constantemente ressignificada por algo que transcende os seus limites normais. A eleição de outros personagens principais, como a mãe de Koffie, o menino vestido de princesa maltrapilha e a irmã do forasteiro que tem de lidar com a IST do namorado (além de revelar o dado machista daquela sociedade) serve para tornar essa fábula mais polifônica e menos personalista. No fim das contas, não se trata de um enredo excessivamente centrado em alguém, pois ele se abre a outras experiências e perspectivas humanas encontradas nas particularidades de cada um ali.
Augúrio propõe uma jornada imprecisa e turva na qual vale à pensa se perder. Mesmo que não tenhamos as informações exatas a respeito dos contextos sócio-políticos-culturais-religiosos, é possível mergulhar nessa viagem desafiadora de personagens lidando com os destinos e as sinas a eles impostos. Koffie faz um esforço enorme para se enquadrar no terreno das múltiplas crenças familiares, mas logo é chamado à responsabilidade de encarar outras coisas, como a ausência paterna que ele tenta combater com uma longa procura em vão. Com uma trama que se desenrola na semana santa, em torno das comemorações da Páscoa, o longa-metragem belga pede ao espectador que deixe um pouco de lado a racionalidade cartesiana e se perca um pouco nas curvas sinuosas das mitologias, como acontece ao protagonista. Outro aspecto recorrente na produção é a tentativa de honrar os mortos, especialmente por meio de rituais que ajudariam no processo de negociação com o luto. Tanto Koffie quanto o menino vestido de princesa que chora a morte da irmã (às vezes sublimando essa dor por meio da violência direcionada a seus inimigos) batalham para consagrar a memória dos entes queridos ausentes em cerimônias fúnebres, curiosamente, mesmo sem os seus cadáveres. A reverência aos mortos é fundamental à fantasia que engloba religiosidade e outras convicções encarregadas de significar os mistérios.
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)
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