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Sinopse

Um surto misterioso impede a população mundial de dormir. Começa a corrida contra o tempo para contornar o problema, que torna as pessoas violentas e condena a humanidade à morte em poucos dias. Jill, uma ex-militar e segurança particular, precisa proteger a sua filha pequena, que ainda mantém a capacidade de dormir e se torna alvo de cientistas desonestos.

Crítica

Um surto mundial impede as pessoas de dormirem. A Netflix tem se divertido em oferecer distopias sobre a privação de sentidos e de comunicação: ora os personagens precisam fechar os olhos para evitarem os ataques (Bird Box: Caixa de Pássaros, 2018), ora têm que se calar diante de perigosos monstros (The Silence, 2019, genérico de Um Lugar Silencioso, 2018). Agora, não podem dormir, a partir de um problema abrupto acompanhado pela interrupção global da eletricidade. Os personagens explicam a seriedade do fenômeno: sem sono, o cérebro pode crescer, a capacidade de raciocínio se perde, e dentro de poucos dias, as pessoas passam a agir como animais sanguinolentos. O processo talvez fosse mais complexo do que esse, porém o diretor Mark Raso corre para chegar ao que lhe interessa: a zumbificação das pessoas nas ruas, a necessidade da heroína (Gina Rodriguez) em proteger uma criancinha indefesa (sua filha) e um garoto rebelde (o filho) de uma horda armada. Surgem então as imagens esperadas desse tipo de narrativa: mãe correndo desesperada com a criancinha no colo, o carro parando no meio da autoestrada por causa de algum obstáculo mortal, plano aéreos indicando o fumaça e explosões por todos os lados, e assim por diante.

Numa narrativa dedicada à tensão, seria fundamental trabalhar a progressão dos indícios: os protagonistas ficam acordados de madrugada; depois se percebe que o mesmo ocorre com vizinhos e familiares; em seguida alguém deduz o problema, começa a notar pequenos distúrbios de comportamento nas pessoas cansadas, e assim por diante. Ora, Awake (2021) enfrenta séria dificuldade de lidar com o tempo. Jill fica acordada durante uma noite, e no dia seguinte, um homem grita com ela no local de trabalho: “Ninguém mais consegue dormir! No mundo inteiro! Você não percebe a gravidade do problema?”. Militares invadem o cômodo, correm para um bunker onde supostamente se preserva a única mulher do mundo capaz de dormir - tudo isso na mesma cena. Ora, de que maneira tiveram conhecimento da catástrofe mundial, acionaram o exército, encontraram e apreenderam a mulher imune ao surto? Uma sequência brutal dentro da igreja nos leva a crer que as pessoas estão privadas de sono há semanas, convertidas em assassinos cruéis, ainda que o fenômeno tenha acabado de começar. A evolução da crise apresenta graves desequilíbrios: Jill continua sadia e lúcida; os dois únicos médicos pesquisando a doença estão racionais, enquanto pessoas nas ruas se agridem sem motivo, e fanáticos buscam sacrificar uma criança para aplacar a ira divina.

Além disso, o roteiro passa a acumular incongruências: a mãe preocupadíssima com a filha a deixa dormindo no carro aberto em plena rua repleta de zumbis, e depois decide praticar tiro dentro de uma biblioteca. Ela estima ser indispensável conseguir um mapa, que jamais consulta a seguir. Um prisioneiro agressivo (Shamier Anderson) entra e sai da trama sem deixar marcas no percurso dos protagonistas – a propósito, a conversa dele com o filho Noah (Lucius Hoyos), a muitos metros de distância da mãe, é escutada à perfeição por Jill, que talvez possua escutas invisíveis ou algo do tipo. A facilidade com que esta mulher invade um local ultrassecreto, caminhando diante de inúmeras portas vidradas sem ser percebida, soa tão absurda quanto sua escapatória minutos mais tarde. Comentários dos personagens sobre comida e gasolina, elementos fundamentais para o trajeto através de uma América devastada, se tornam tão insanos quanto a existência de um revólver sem balas, misteriosamente carregado a seguir. O projeto transparece a impressão de um roteiro desconjuntado – seja um texto prematuro, filmado antes de estar amadurecido, seja um projeto que passou por tantas mãos e versões que se descaracterizou.

No papel principal, Gina Rodriguez recebe o protótipo da personagem feminina “forte” concebida por homens: ela tem passagem pelo exército e ocupa a função de segurança privada, convertendo-se numa figura embrutecida, masculinizada e desprovida de interesses amorosos. É curiosa a incapacidade em conceber a conciliação orgânica entre vida afetiva e vida profissional: as mulheres do imaginário conservador precisam ser fortes ou felizes no amor, jamais ambos. Em contrapartida, a protagonista possui construção psicológica limitada: Jill é desprovida de planos para o futuro, de opiniões sobre a crise do sono, de um apego específico aos filhos. As crianças ganham tratamento estereotipado, sendo uma garotinha ingênua, encarregada de diálogos maduros demais para a sua idade (os roteiristas certamente não sabem escrever falas para crianças) e um adolescente rebelde. Os dois servem sobretudo para colocar a mãe em perigo ao desrespeitarem suas ordens e pedidos. Por estes fatores, nenhum ator oferece uma interpretação marcante, ou minimamente complexa. Rodriguez encarna uma mulher desprovida de hesitação, remorso, dúvida, ira. Jill se resume a um corpo em movimento, e a narrativa aguarda somente a resolução do conflito dela para encerrar o filme – quanto ao resto do mundo, paciência. Ninguém se interessa, dentro deste contexto, em descobrir de onde surge o surto, ou como os governos reagem ao dilema.

Awake lembra o tipo de projetos originais que a Netflix desenvolveu no início da plataforma, quando recebia fortes críticas por suas produções. O conceito por trás da iniciativa, seja de direção, elenco ou roteiro (sem falar de direção de fotografia e de som, bastante frágeis) soa apressado, um tanto amador para uma empresa com tamanho investimento em criação. Os atores são mal escolhidos, a narrativa precisaria de muito mais desenvolvimento, e a montagem se revela incapaz de estabelecer uma lógica durante meia dúzia de reviravoltas truncadas. A exemplo de Tau (2018), Extinção (2018) e I Am Mother (2019), a empresa contratou um jovem diretor de potencial, impedido ironicamente de imprimir qualquer marca autoral. O filme resulta numa experiência genérica destinada a preencher o acervo do serviço de streaming, carente de novos (e rápidos) projetos. Ele serve sobretudo enquanto sintoma de uma nova forma de produção industrial, variando o mínimo a partir de uma fórmula consagrada (no caso, as distopias de privações sensoriais), escolhendo uma atriz de renome moderado para servir de apelo ao público médio. Este é um “pequeno filme”, em diversos sentidos do termo: uma obra de pequenas proporções, de curto orçamento, de singelas ambições e de esmero proporcionalmente limitado – um cinema pensado para o atacado, ao invés do varejo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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