Sinopse
Ayka é uma jovem de origem cazaque que vive ilegalmente em Moscou. Ela dá à luz num hospital local, mas abandona o filho por medo de ser descoberta e deportada. Logo depois, enfrenta complicações pós-parto, além de fome, solidão, falta de emprego e a perseguição da máfia local, a quem deve dinheiro.
Crítica
Do primeiro ao último frame de Ayka sobressai a austeridade como um atributo narrativo essencial às intenções diretivas, vide a câmera angustiantemente colada ao corpo da protagonista, com isso expressando no âmbito físico o acuamento emocional e psicológico que ela enfrenta na Rússia. Ayka (Samal Yeslyamova) é uma jovem cazaque que foge desesperadamente do hospital onde acabara de ter seu primeiro e indesejado filho. A cena é carregada de violência, afinal de contas, com a desculpa de ir ao banheiro, a moça abre uma janela e evade da maternidade. Deixando para trás os choros agudos dos infantes, se dirige diretamente, ainda convalescente, ao trabalho que consiste em depenar frangos num subsolo insalubre. Essa consecução de eventos traça, de início, o substrato de um longa-metragem disposto a mergulhar profundamente na aviltante situação dos imigrantes em Moscou, submetidos a toda sorte de infortúnios, especialmente se estiverem ilegais. Assim, lutando contra a fraqueza do corpo se refazendo do parto, ela sai em busca de subsistência.
Não bastasse o cotidiano naturalmente áspero de Ayka como pária, o país escolhido enquanto ideal ao recomeço de vida está sendo castigado por uma nevasca praticamente sem precedentes. Portanto, a mulher é vista constantemente em seus deslocamentos gélidos por um ambiente que não lhe dá um minuto de trégua, pondo-a, então, à prova intermitentemente, quiçá para atestar seus brios e limites. O cineasta Sergei Dvortsevoy se detém nas filigranas, deixando que a brutalidade experimentada pela estrangeira seja refletida também em outros personagens e cenários. A conduta do senhorio que se aproveita dos cazaques, fornecendo-lhes um lugar depauperado e minúsculo para morar num regime de amontoamento, e dos próprios imigrantes que, sem alternativa, acabam reproduzindo a virulência com a qual são tratados na nova pátria, refletem uma sordidez apenas possível por conta da inclinação humana à exploração das fraquezas alheias. É uma cadeia, em que o desprezível dono da pousada, em dado momento, também se torna vítima do superior poderio policial.
Justamente por sua disposição em levar adiante um plano sensorial tão consistente quanto capaz de exasperar, Ayka não configura uma sessão fácil ou minimamente agradável. A forma como Dvortsevoy acessa a miserabilidade da protagonista, bem como a de boa parte das pessoas que cruzam o seu trôpego caminho, é desprovida de afetações, aferrada a uma denúncia com ares de registro coloquial. Mesmo rente ao corpo de Ayka, a câmera tem dificuldades de se movimentar nos espaços exíguos, de encontrar angulações e perspectivas, desse modo denunciando condições sub-humanas às quais ela é exposta como alguém sem direitos, uma cidadã considerada de segunda categoria pelo sistema que permite vistas grossas e a disseminação de forças paralelas fomentando o abuso alheio. Samal Yeslyamova apresenta um desempenho excepcional como essa mulher infelizmente sem opções menos degradantes, sujeitada a atitudes de naturezas por vezes torpes para garantir sua permanência. O fato de dever a mafiosos complica tudo sobremaneira.
Ayka é uma descida ao inferno potencializada pela natureza hostil. Cada incursão pela rua esbranquiçada de neve adquire ares de jornada propensa à tragédia. O realizador alterna minúcias, como o olhar melancólico da atendente, igualmente cazaque, que omite conhecer a protagonista por medo de perder o emprego – e nesse contexto, que há de condena-la por tal “esquecimento”? –, e manifestações mais diretas de uma agonia deflagrada pela maternidade forçosamente negada no começo do filme. Tanto que Ayka padece com frequência de sangramentos derivados da falta de cuidados pós-parto e, adiante, com o doloroso acúmulo de leite não utilizado em suas mamas. Sergei Dvortsevoy cria um percurso orgânico, repleto de sofreguidão, pautado por uma leitura humanista e pesarosa das circunstâncias bárbaras que mediam a estadia dessa estrangeira num país pouco hospitaleiro, que até a permite sobreviver, para tanto cobrando como tributo a penhora de sua dignidade.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 8 |
Chico Fireman | 5 |
MÉDIA | 6.5 |
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