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Sinopse

Emi trabalha como professora de História numa respeitada escola conservadora de Bucareste. No entanto, quando seu vídeo fazendo sexo com o marido vaza para todos os alunos, ela corre o risco de ser demitida. A instituição organiza uma grande reunião com pais de alunos, onde será decidido o destino da professora.

Crítica

É possível que Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021) seja o primeiro grande longa-metragem apresentado em festivais a respeito da Covid-19. Entenda-se: não uma obra em que os atores atuam através de telas, presos em suas casas, mas um projeto que vai para as ruas, encontra pessoas reais usando máscaras (muitas delas fora do nariz), higienizando as mãos com álcool gel, medindo a temperatura antes de entrarem numa loja. Compreende-se o interesse do Festival de Berlim numa obra tão pertinente e oportuna, buscando representar um período de crise enquanto ainda se encontra imerso nele. O diretor Radu Jude corre risco considerável ao realizar esta obra: a história poderia soar datada, mera paródia desprovida de distanciamento para a reflexão. No entanto, o cineasta apaixonado por comédias, farsas e sátiras (vide Aferim!, 2015, Letra Maiúscula, 2020), aceita realizar uma obra no calor do momento. Ele foge à responsabilidade de efetuar um tratado sobre os tempos de pandemia para construir uma sátira assumidamente grosseira, defendendo nos letreiros o direito de oferecer “nada mais do que uma piada”.

Para o cineasta romeno, vivemos numa sociedade doente. O roteiro se diverte ao mostrar as pessoas mal-educadas nas filas do supermercado e nas calçadas de Bucareste. Os cidadãos passam a acreditar nas fake news mais improváveis, começam a vigiar as vidas alheias e publicar a sua intimidade nas redes sociais. Desaparece o limite entre o público e o privado: todos se veem no direito de investigar o que os outros fazem, podendo “cancelá-lo” se acharem conveniente. Jude retrata a Romênia, porém os brasileiros terão facilidade em identificar este cenário do nosso lado do Atlântico – afinal, também temos políticos autoritários, corrupção generalizada, moralismo hipócrita e o passado recente de ditadura militar. Diante deste olhar a respeito de nossa involução enquanto sociedade, o diretor se torna menos pessimista do que niilista. Ele não lamenta a crise, apenas a constata com o prazer de quem, uma vez imerso no incêndio, quer admirar o circo pegar fogo. O roteiro fragmentado em esquetes atira para todos os lados: nossa dependência de telefones celulares, o negacionismo científico, o revisionismo histórico, a incompreensão sobre o papel dos professores. Esquerda e direita, jovens e velhos são igualmente ridicularizados. O mundo está perdido: vamos bailar.

Talvez a principal fragilidade desta comédia provenha da ausência de foco. Jude constitui um bom cronista, porém qual seria o valor de nos depararmos com uma enésima constatação sobre notícias falsas e hipocrisia religiosa? No segmento central, dedicado ao dicionário de conceitos, o filme critica a cultura do estupro, o saudosismo da ditadura e a virtualidade das relações, enquanto aproveita para saudar a capacidade do cinema em refletir sobre o real. Todas estas ideias são válidas, porém soam como conversas de bar, onde pessoas embriagadas disparam frases de efeito a respeito das chagas do mundo. Qual espectador não seria capaz de listar, por conta própria, um abecedário de catástrofes? Os termos seriam outros, e talvez as nossas reflexões estejam aquém da bela pesquisa fornecida pelo cineasta. No entanto, ele se contenta com o filme-brainstorming, uma iniciativa onde todas as ideias foram incorporadas na ordem que lhes coube entrar, sem medo do excesso, da repetição, da incoerência. Há muito vigor para pouco direcionamento cinematográfico.

Em consequência, Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental se torna uma espécie de liquidação de loja popular, de onde se encontra de tudo, aos gritos e atropelos – tanto produtos excelentes quanto remendos e bugigangas sem importância. O sexo explícito no início, quando a professora grava sua sex tape com o marido, talvez despertasse alguma controvérsia se o instante não fosse filmado com tamanho senso de ridículo. O humor funciona como excelente motor de distanciamento, porém Jude o eleva a tal patamar que corre o risco de se descolar por completo da realidade. O filme acaba verbalizando tudo o que pensa, sem metáforas nem reflexões deixadas ao espectador (vide a reunião no terço final, tristemente literal e óbvia). Em contrapartida, quando ousa escapar à verbalização dos dilemas da pós-modernidade, resvala no humor pastelão (o que dizer da cena sobre a super-heroína com seus “poderes especiais”?). A comédia beira a aleatoriedade e a inconsequência. Por exemplo: a câmera se atarda sobre as fachadas dos prédios e os letreiros do comércio. Seria uma crítica ao consumismo, ao hedonismo? Pouco importa, afinal, o recurso jamais se desenvolve. O diretor utiliza sua câmera como uma criança que se diverte ao rabiscar na folha em branco.

Sem dúvida, há certo alívio em nos deparar com uma obra anarquista depois de exemplares de um cinema empoeirado e “bem comportado” como Natural Light, na mostra competitiva da Berlinale. No entanto, a brincadeira juvenil parte da rebeldia adolescente para chegar à... mesma rebeldia adolescente de um final evocando super-heróis. As três possibilidades de término reforçam a impressão incômoda de que, para o autor, tanto faz onde a história chegará, ou se chegará a qualquer lugar. O filme se orgulha de não possuir mensagens, tornando-se um veículo retórico: ele acredita possuir mérito por sua própria existência, enquanto filme da pandemia, da Covid-19, das máscaras, da sociedade das telas. Esta forma de provocação em modo “vale tudo”, amparada pelo preceito de liberdade artística, resulta na possível leitura de conformismo. O projeto observa nossa precariedade política com o senso de quem despreza os motivos que nos trouxeram aqui, as possibilidades de sairmos dessa, que efeito o período nos trará etc. O cinema, arte que mais exige o trabalho do tempo, da coletividade, dos esforços técnicos e criativos, se reduz a um gesto egoico e imediato, fechado sobre si próprio. Jude tenta combater um monstro com as ferramentas do inimigo, mas talvez acabe sendo assimilado por ele.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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