Sinopse
Há certos dias que, mesmo sem grandes acontecimentos, nos forçam a crescer. Andrea tem só 10 anos e talvez ainda não perceba que hoje foi um desses dias.
Crítica
O primeiro elemento que desperta a atenção em Baile (2019) diz respeito ao formato da tela. A diretora Cíntia Domit Bittar trabalha com a janela vertical 9:16, típica dos retratos e também das capturas em telefone celular. O filme se abre e se encerra com o famoso 3x4, tão impessoal (no início) quanto carregado de significados (no final). Duas formas de registro dialogam entre si: a fotografia dos nossos tempos velozes de redes sociais, quando as imagens se perdem na memória (humana e tecnológica) sem necessariamente visar o status de uma obra de arte, e a fotografia enquanto registro do tempo, ou documento de uma época. “Essa pode ser a última foto da vida dela”, explica a mãe Lurdes (Patrícia Saravy) à filha Andrea (Emily de Jesus), referindo-se aos retratos de mulheres idosas. De certo modo, esta fotógrafa nas horas vagas introduz à menina o potencial da arte em preservar uma forma de vida, mesmo quando o corpo perece. Um dia, estas senhoras – e todas as outras pessoas – estarão mortas, mas suas expressões naquele instante serão eternas enquanto existir alguém para vê-las. A capacidade de embalsamação do real pela imagem, descrita por André Bazin, constitui o tema do fascinante curta-metragem que encontra no olhar infantil uma forma de atribuir distanciamento ao mundo.
A jovem protagonista representa uma pessoa capaz de questionar a sociedade ao redor, antes que tantos mecanismos lhe pareçam naturais ou inevitáveis. Por que pode fazer fotos com o celular, mas está proibida de imprimi-las no papel? O que lhe impediria de atravessar a rua sozinha e comprar um medicamento na farmácia? Por que seu retrato não pode figurar ao lado de uma extensa galeria de homens na Câmara dos Deputados? Sem ter plena consciência de sua condição de mulher negra, ela apresenta um ponto de vista de inconformidade às normas. A diretora percebe na infância a potência preciosa de admirar estruturas com uma indagação: e se fosse diferente? Ao invés de propor alguma forma de emancipação, ou de valiosa lição de vida, cria as condições para que a descoberta da diferença se desenvolva no futuro. O filme pode ser considerado uma leitura poética sobre a empatia e a alteridade: Andrea tenta compreender o silêncio da avó idosa, a opressora condição de trabalho da mãe, o incômodo da professora diante da pregação religiosa em espaço público, a separação entre homens e mulheres numa repartição política. Em tempos de julgamentos polarizados e de antiintelectualismo por parte de uma direita raivosa, a narrativa investe numa jornada de reflexão onde a capacidade de formular perguntas se torna mais importante do que a necessidade de encontrar respostas.
O título possui alguns belos significados. O baile é explicitamente mencionado por uma personagem, acreditando que a maquiagem e as roupas lhe credenciam para ir a uma festa – caso em que simboliza o sonho e o escapismo, preservados pela imagem fotográfica. A coreografia das crianças ao redor de uma árvore também remete à dança, assim como os passos apressados e caóticos dos homens engravatados, alheios à presença de uma criança no local. O movimento contínuo dos corpos domina a mise en scène ironicamente dedicada à pose. Mesmo a expressão “segue o baile”, no sentido da reprodução de estruturas sociais viciadas, alude à reprodução acrítica do machismo no poder legislativo. O baile representa tanto a liberdade da bisavó, que dança em sua cabeça propensa a devaneios, quanto a prisão dos adultos correndo por todos os lados na Assembleia. Em paralelo, o filme aborda a noção de mulheres em deslocamento constante, seja a mãe atarefada, a filha curiosa ou a professora responsável pela segurança dos alunos. As dicotomias movimento/inércia e transformação/permanência, ilustradas pelo cinema e pela fotografia still, são desenvolvidas com impressionante fluidez.
Talvez o curta-metragem se torne mais didático ao explorar os quadros de políticos, verbalizando a percepção do machismo estrutural. Entretanto, o tema jamais monopoliza a narrativa, nem distrai o filme da subjetividade infantil. Emily de Jesus está excelente em cena, provocando fértil jogo cênico com Patrícia Saravy, atriz de valiosa desenvoltura com o corpo, os diálogos e com sua autoimagem. A conversa entre mãe e filha sentadas no sofá proporciona uma dessas pérolas de direção, quando as atrizes parecem não mais interpretar um papel. A interação soa verossímil, palpável, natural. Pelas sequências caseiras em particular (o banho na bisavó, o reencontro entre mãe e filha sem o remédio), Baile comprova o talento de Cíntia Domit Bittar para um cinema humanista onde política e afeto se equilibram. A conclusão, quando a câmera de cinema se transforma em câmera fotográfica e o enquadramento do cinema se confunde com o visor do aparelho still, condensa a abordagem estética e narrativa. Neste momento, unem-se duas formas de olhar, dois conceitos de registro do real e duas gerações de mulheres muito diferentes, num gesto de cumplicidade entre bisavó e neta, revelado apenas ao olhar cúmplice do espectador.
Filme visto no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.
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