Crítica
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Sinopse
A obra do escritor colombiano Andrés Caicedo é revista a partir do prisma de sua permanente ansiedade. O amor dele pela literatura de horror, pelos chamados filmes B, e uma inadequação que chegou ao limite do suportável.
Crítica
Do ponto de vista da linguagem, uma das coisas mais instigantes de Balada para Niños Muertos é o diretor/roteirista construindo a atmosfera de horror por meio das texturas do desenho sonoro e das imagens. Estamos diante de um documentário sobre o colombiano Andrés Caicedo, escritor prodigioso que publicou apenas um livro antes de cometer suicídio aos 25 anos, assim deixando uma obra inédita a ser investigada e festejada (não apenas na América Latina). São muitos os vieses disponíveis, mas o cineasta Jorge Navas parte da investigação de aspectos familiares que auxiliam a compreensão sobre tendências artísticas. Enquanto o filme transita pelas memórias resgatadas por parentes, amigos e conhecidos, a câmera traça os contornos horror, como durante a revelação sugestiva de que Andrés foi o único filho homem a sobreviver. Ao passear por fotografias antigas, é como se o dispositivo esperasse delas uma sinalização mística sobre os enigmas em torno do personagem principal. As palavras do escritor são emprestadas para contar como começou a história de amor entre os pais dele. Além disso, Jorge também se aproxima da linguagem do gênero como forma de fazer jus ao amor que seu biografado tinha por esse tipo de história. Os rabiscos de Andrés continham menções a H.P. Lovecraft e às suas criaturas. Já os filmes do gênero povoavam uma imaginação fervilhante e fértil.
Não é comum a seleção de documentários aos festivais de gênero. Portanto, a presença de Balada para Niños Muertos no 13º Cinefantasy é um acontecimento pela excepcionalidade. Também não é tão frequente a classificação de um documentário (suporte cinematográfico) dentro de gêneros específicos, mas o filme colombiano pode tranquilamente ser considerado um documentário de horror, sobretudo pela maneira como se apropria da gramática, dos códigos e dos tiques do gênero para construir o prólogo. Essa pegada é gradativamente diluída ao longo do filme, com isso perdendo terreno para o viés mais informativo. Porém, é instigante o começo em que o cineasta não se contenta com os álbuns familiares enquanto ilustrações de uma investigação e tenta criar a partir delas uma sensação de fantasmagoria; de modo semelhante, é bem-vindo que ele atrele os interesses literários e cinematográficos de Andrés Caicedo (evidentes nos escritos que o autor deixou para trás) com coisas que realmente aconteceram em sua família. Um exemplo disso é quando um narrador lê relatos autobiográficos em que o protagonista deixou registrada a sua vontade de morrer antes dos pais para que eles não testemunhassem a sua velhice decadente. Enquanto a voz diz isso, a câmera se aproxima lentamente da fotografia da mãe até “penetrar” num de seus olhos. Há ali uma atmosfera sendo provocada.
Ainda que se torne mais convencional depois da ótima introdução marcada pela linguagem do horror, Balada para Niños Muertos consegue manter a aura de mistério em torno de Andrés Caicedo. Mas, então há aqui um paradoxo interessante e bem trabalhado pelo filme: nesse processo de investigação e suposta revelação do personagem, nem tudo é dito e algumas lacunas permanecem. Como os pais do escritor reagiram à sua morte? Os dois ainda estavam vivos? De que modo a sua incursão pelos Estados Unidos foi realmente determinante para a deterioração psicológica do jovem? Como se dão os mencionados signos edipianos na obra do gênio precoce? São perguntas que ficam parcial ou totalmente sem respostas, uma vez que a tarefa à qual Jorge Navas se propõe é menos esclarecedora e mais mobilizadora. A manutenção de certas obscuridades é fundamental para borrar as fronteiras (se é que elas existem) entre o homem e o mito. O documentário não persegue uma desmistificação, embora se prontifique a nos dar subsídios suficientes para compreender determinadas coisas, gestos e impulsos. E o cineasta se sai bem diante da tarefa ambivalente de lançar luz sobre perspectivas humanas, demasiadamente humanas, da experiência de Andrés Caicedo, sem com isso retirar dele uma aura de enigma que nunca será totalmente decifrado. Está aí a complexidade desse resultado.
Balada para Niños Muertos ainda se detém sobre a relação de fascinação de Andrés Caicedo manteve pelo cinema. Além do resgate dessa paixão, especialmente por filmes B de ficção científica e horror – devidamente ilustrada por Jorge Navas com trechos de obras emblemáticas –, há o resgate da empreitada hollywoodiana do colombiano. O documentário traça como aventura amadora (no sentido de quem ama algo profundamente) a escrita de roteiros com o intuito de apresenta-los ao lendário cineasta/produtor Roger Corman. Vale ressaltar que, nesse sentido, o documentário carrega um valor histórico, pois remonta a um momento (os anos 1960/70) em que as chamadas produções B deixavam os porões da marginalidade comercial nos Estados Unidos para constituir um importante filão no cinema norte-americano. Amigos dizem que Andrés colocava George A. Romero, por exemplo, no mesmo patamar de cineastas consagrados como Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, com isso adicionando outro elemento importante para compreendermos a personalidade em questão. O protagonista era um jovem inconformado, atingido por inquietações existenciais e turbulências psicológicas, que ressignificou heranças e vivências familiares por meio da literatura e do cinema. O filme ainda coloca em discussão saúde mental e a memória enquanto imprime textura de horror.
Filme assistido durante o 13ª Cinefantasy, em junho de 2022.
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Muller, que crítica linda, profunda. Vi o filme ontem e fiquei muito impactado.