Crítica
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Sinopse
Neno, Tiana e Bituca, um bandido foragido, iniciaram um complexo triângulo amoroso em uma situação inusitada: enquanto desenrolam a relação, os moradores da comunidade carente acabam de ser surpreendidos pela prefeitura do Rio de Janeiro, que decidiu desapropriar arbitrariamente os barracos do local, alegando risco de deslizamento. A verdade, porém, é outra: a real intenção do governo é construir um grande hotel de luxo.
Crítica
Mais de quatro décadas após o lançamento de A Noite do Espantalho (1974), cultuado musical anárquico-psicodélico estrelado por Geraldo Azevedo e Alceu Valença, o músico Sérgio Ricardo assume novamente a função de diretor cinematográfico com Bandeira de Retalhos, adaptação de um roteiro de sua autoria, concebido ainda na década de 1970. Baseado em fatos, o texto já havia dado origem a uma bem-sucedida montagem teatral pelas mãos da ONG Nós do Morro, que atua diretamente também nesta transposição para as telas – desde o processo de escalação de elenco, passando por diversas áreas técnicas da produção – em parceria com o produtor Cavi Borges, que lutou para bancar o retorno de Ricardo. A trama se passa em 1977, quando o Governo do Estado do Rio de Janeiro decretou como “área de risco” parte do Morro do Vidigal, determinando a desapropriação das moradias do local.
Assim, acompanha-se o cotidiano dos habitantes da comunidade, que, indignados com a ação totalmente arbitrária – cujo real motivo seria a venda da área a investidores internacionais para a construção de um hotel de luxo – unem forças a um político e a um notório jurista, através da Associação de Moradores, para impedir a demolição dos barracos e a transferência das famílias para a favela de Antares. A condução dada por Ricardo ao enredo deixa transparecer a vocação para a teatralidade do material, acentuada pelas restrições orçamentárias – os valores de produção limitados, a encenação pueril, um elenco de apoio que por vezes não esconde o amadorismo – fazendo com que o projeto ganhe uma aura, consciente por ser essa a única opção possível, de cinema de guerrilha, de improviso.
Há nessa característica, oriunda da adequação ao obstáculo financeiro, algo que aproxima o longa dos trabalhos recentes de outros cineastas veteranos, como o brasileiro Luiz Rosemberg Filho e seu Guerra do Paraguay (2016), ou o francês Paul Vecchiali, com Os 7 Desertores (2017). Em ambos os exemplos, que também exploram contextos históricos, contudo, o viés teatral assume uma clara função alegórica – até mesmo farsesca, especialmente no exercício de Vecchiali – fazendo da artificialidade uma ferramenta de potencialização da experimentação de linguagem. No caso do longa de Ricardo, entretanto, a demanda parece ser justamente pelo contrário, pois ainda que exista um traço poético na obra – nas falas rimadas ou em verso que brotam esporadicamente – as questões sociais presentes são expostas e debatidas de modo direto, concreto, criando, assim, um ruído entre a intenção e a realização.
Ao se utilizar de fragmentos de materiais de arquivo, com imagens da cobertura jornalística da época sobre a desapropriação, bem como de eventos similares ocorridos em tempos mais recentes, Ricardo insere uma carga documental que termina por ressaltar ainda mais a necessidade de um realismo cuja dramaturgia de seu longa falha em transmitir. A pujança desses extratos documentais, juntamente com as passagens musicais – como as que demarcam as viradas na trajetória da protagonista Tiana (vivida com competência por Kizi Vaz) – configuram o que de melhor existe no trabalho do diretor, revelando como as fraturas na composição da estrutura social brasileira quase nada mudaram nos últimos quarenta anos. Nesse aspecto, mesmo que talvez não intencionalmente, a falta de apuro na reconstituição de época, novamente em função dos recursos modestos, até contribui para criar uma sensação de atemporalidade, como se o ontem e o hoje se confundissem.
De modo geral, porém, Bandeira de Retalhos resulta bastante frágil, carecendo de cadência narrativa e sofrendo com a inconsistência no estabelecimento dos dramas particulares dos personagens, o mais evidente sendo o triângulo amoroso envolvendo Tiana, seu marido (Marcello Melo) e o bandido Bituca (Renan Monteiro), que flerta com traços trágicos de crônica rodriguiana. Uma falta de peso na construção dos conflitos individuais que afeta a própria questão coletiva central, principalmente no terceiro ato, quando se acumulam situações pouco verossímeis. Não há dúvidas do empenho e desejo sincero dos envolvidos em fazer com que a proposta funcione e sua mensagem seja propagada. O senso comunitário se faz notar, como na união pelo canto e a dança na roda de samba, e mesmo na presença de nomes consagrados do elenco em participações especiais (Osmar Prado, Antonio Pitanga, Bemvindo Sequeira). Mas os raros momentos de força – a fala final do personagem de Pitanga, a plasticidade do plano derradeiro, indiscutivelmente o mais elaborado do longa - e as boas intenções, infelizmente, não são capazes de sobrepujar as limitações do conjunto.
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