Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades
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Bardo, falsa crónica de unas cuantas verdades
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2022
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México
Crítica
Leitores
Sinopse
Ao retornar para casa, um famoso documentarista e jornalista mexicano tem uma enorme crise existencial.
Crítica
O que é fato e o que é mentira em Bardo, falsa crônica de algumas verdades? Provavelmente, é tudo tanto um quanto o outro, e mais um pouco. Assumidamente seu trabalho mais pessoal, este pode ser visto tanto quanto um testamento como uma confissão do cineasta mexicano Alejandro Gonzalez Iñarritu, um nome forte e criativo que despontou entre os seus, mas que, assim que o sucesso lhe sorriu, tratou de fazer o que muitos dos seus compatriotas passam uma vida inteira almejando: cruzou a fronteira e tratou de ir ganhar a vida nos Estados Unidos. Após a consagração, porém, ele agora trata de percorrer o caminho inverno, mostrando-se ciente das escolhas que fez, sabendo que muitas foram necessárias, da mesma forma como outras terminaram por se mostrar equivocadas. Mas que não se pense em lamúrias ou arrependimentos: eis aqui uma celebração, tanto dos erros quanto dos acertos, pois todos parte de uma jornada da qual não se volta, apenas se aproveita o melhor para seguir em frente ainda mais seguro de si. Olhar adiante, sem deixar, porém, de lembrar de tudo que ficou para trás. Fantasia e imaginário se misturam de maneira esfuziante e caótica, mas nunca menos do que contagiante ou ambiciosa. Peca-se pelo excesso, enfim, e não por trilhar zonas seguras que nada de novo oferecem.
Um bardo, na Europa antiga, era uma pessoa a qual se atribuía a responsabilidade de contar causos e histórias, lendas e poemas, geralmente musicados e narrados de forma oral. Eis também a função de Silverio Gacho, o jornalista e documentarista que volta ao seu México natal para receber as honrarias que lhes são devidas antes de ser agraciado com o mais importante reconhecimento concedido a um profissional de sua área nos Estados Unidos. É um feito que alcançou, e do qual muito se orgulha, mas que até ele chega revestido de manipulação política e concessão em nome de uma boa vizinhança. Seria apenas por seu talento, como tanto se esforça para se convencer, ou como parte de um jogo maior, do qual não passa de um peão menor, da forma exata que muitos dos seus depreciadores tanto insistem em atacá-lo? A ilusão que aos poucos vai gerando em torno de si termina por vencer e revelar o quão insignificante são as pedras que em sua direção são almejadas, pois se nele não alcançam, qual o problema em delas se livrar? O que resiste é um homem ciente de suas decisões, por mais inesperadas ou surpreendentes que estas tenham se mostrado no devido tempo, mas que, na soma das horas, tenham encontrado o valor pela qual se desdobraram. Família, trabalho, honra, história: eis os pilares de um caráter que, se à venda estivesse, lance nenhum alcançaria o preço exigido.
Numa realidade na qual os Estados Unidos Mexicanos formam um só país prestes a se concretizar e o passado pode ser reescrito de acordo com a vontade dos que se encontram no poder, ainda que de modo transitório, não basta apenas lembrar: é preciso também ser hábil no contar, em passar adiante aquilo que com tanto zelo se preserva dentro de si. Silverio corre pela casa em busca dos braços da mulher amada, esquece-se de mover os lábios pela enormidade de sentimentos que transborda no diálogo com a mãe, protege o sono inocente do filho pequeno e se preocupa com a segurança da filha que mora distante, da mesma forma como não consegue interromper o lamento pela criança que um dia chegou a ter em seus braços, mas que por recusa a enfrentar este mundo, optou por deixá-lo muito mais cedo do que o esperado. A ilusão que cria tanto protege quanto aliena, de problemas reais e discussões concretas, sejam provocadas pela mágoa de antigos amigos que foram abandonados, como também pela dolorida nostalgia daqueles que não mais se encontram presente. Assim como Fellini (8 ½, 1963) ou Jabor (A Suprema Felicidade, 2010), Iñarritu também quer lembrar para contar, esquecer para poder viver, chorar para continuar sorrindo.
Porém, ao contrário de tantos outros que, antes dele, percorreram caminhos semelhantes, este não seria um testemunho fiel não fosse marcado pelos excessos e até uma certa dose de histrionismo. Iñarritu chega ao pouco de prejudicar a fruição de momentos de impressionante singularidade, como o reencontro do filho adulto com o pai que lamenta não ter conhecido melhor, pela insistência de uma trucagem digital que mais distrai do que colabora com a fruição deste instante em particular. O cineasta que aqui se encontra é mais aquele que revirou conceitos e recheou sua narrativa de provocações em Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (2014), e menos o responsável por obras mais tradicionais, como Babel (2006) ou O Regresso (2015), apenas para ficar entre os seus trabalhos mais celebrados. Há algo a ser dito, é fato, mas reside mais no sentimento provocado e nas reações atingidas do que naquilo que possa ser compreendido ou racionalizado. A ordem dos fatores pouco importa ao resultado: o que deverá permanecer é a sensação de insatisfação e plenitude, o saciar-se e o querer mais, carregando a culpa dos antepassados e a frustração por pouca mudança ter provocado, ao mesmo tempo em que o regozijo pelo conforto alcançado tanto imobiliza quanto cega frente a acontecimentos maiores e duradouros.
Assim como Woody Allen tantas vezes demonstrou um olhar apurado na escolha de intérpretes que emulassem em cena o seu jeito de ser, Alejandro G. Iñarritu alcança efeito semelhante ao apostar em Daniel Giménez Cacho como protagonista. Ator de diretores como Pedro Almodóvar e Lucrécia Martel, ele aqui reinventa-se como artista explorando impulsos e transições, permitindo-se o ridículo através de uma verve tão intensa quanto hipnótica. É pela seriedade com que lida com o absurdo e o modo quase poético como se depara frente o improvável que seus temores e alegrias se tornam múltiplos, parte de um todo que só faz sentido pois compartilhado com uma audiência atenta a tantos desdobramentos e possibilidades. Da torre humana ao trem transformado em mar, da festa que atordoa os sentidos ao sexo interrompido pelo mais improvável dos convidados, em Bardo, falsa crônica de algumas verdades tudo acaba por ter sua própria lógica, pois posto como verdade de um – o narrador – e decisão de outro – o ouvinte e espectador – que desse discurso irá tirar não apenas o seu proveito, mas também a experiência de quem o viveu, sem nem sempre, porém, saber para onde voltar. A falta de referência é tanto determinante quanto libertadora, pois permite ao mundo fazer desta sua casa. Norte ou sul, inglês ou espanhol, uma América que a todos pertence, mas da qual se apropriam sem o devido direito. A memória é mais rica do que a verdade. E quando em dúvida, que se escolha a primeira, pois será essa que irá permanecer quando nada mais fizer sentido.
Filme visto durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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