Crítica
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Crítica
É preciso ter muita audácia e controle narrativo para sustentar um longa-metragem baseado na premissa de Batalha (2020). O diretor Cristiano Burlan decide apresentar uma série de poetas, artistas do slam e do rap da periferia de São Paulo. Eles declamam suas rimas, versos, textos – e nada mais. Não existem conversas entre eles, testemunhos para a câmera, trechos da vida, divisão em capítulos, narração, letreiro explicativo, material de arquivo, shows gravados. As ferramentas que a maioria dos cineastas utilizaria para conferir dinamismo, facilitar a passagem entre cenas ou descrever personagens está ausente no discurso. Deste modo, Burlan aposta na força de suas cenas, na arte criada pelos artistas (cujos nomes sequer são citados antes dos créditos finais), e sobretudo na articulação da montagem, responsável por estabelecer encontrar uma costura para todo o filme. Este constitui um projeto conceitual digno de estudo, tanto pelos méritos quanto pelas eventuais falhas – em última instância, pela crença profunda na linguagem cinematográfica enquanto produtora de sentido em si mesma.
Por esta razão, excluem-se os adornos na imagem, na fotografia ou no som para “embelezar” as sequências. Nada de mudanças cromáticas, preto e branco, montagens paralelas. Trata-se de um documentário cru no melhor sentido do termo. Diante de tamanhas restrições autoimpostas, o resultado funciona graças às escolhas maduras da direção. Primeiro, os protagonistas não se apresentam numa dentro de uma roda de amigos, nem diretamente para as câmeras. Eles possuem plena ciência do dispositivo cinematográfico logo ao lado, efetuando pequenas trocas de olhar com a equipe – e com o espectador, por extensão. No entanto, disparam suas palavras para a cidade. Os jovens ocupam as ruas não pavimentadas, as avenidas ao lado do metrô, os terraços das casas das comunidades, e dialogam com os céus, ou seja, com todos e com ninguém. Talvez conversem apenas com o espectador, numa revelação da qual somos confidentes privilegiados. Talvez falem para si mesmos, em ruminações pessoais. Há um teor de reflexão filosófica nem sempre associada ao cinema de enfrentamento. O mecanismo produz fricções fascinantes às noções de plateia e de espectatorialidade.
Além disso, o cineasta opta por planos longos, a maioria deles fixos. A montagem permite que o ritmo de cada artista, sua entonação particular, e eventuais correções das próprias palavras sejam incorporados ao corte final. Ao invés de editar as performances em busca de coesão, Burlan valoriza as diferenças de estilo, a velocidade das frases, o fôlego exigido de cada tirada cênica. Estamos próximos do monólogo teatral e do solo na dança: oferece-se o palco para que os artistas brilhem em solitário. Ao mesmo tempo, nota-se o cuidado extremo da imagem – a fotografia e a captação de som direto são impecáveis –, procurando desempenhar a mínima intervenção no trabalho alheio. O documentário destaca os versos de homens e mulheres, adolescentes e jovens adultos, sobre questões relacionadas à violência contra a mulher, ao racismo, à apropriação da cultura das favelas pela burguesia, ao preconceito contra indivíduos LGBT etc. Trata-se de um filme capaz de evocar lutas existentes há décadas (ou séculos) por meio de citações específicas do nosso tempo: o caos do governo Bolsonaro, as decisões dos Ministros do Supremo a favor de homens ricos e brancos, as mulheres “belas, recatadas e do lar”, a herança de Marielle Franco, a educação pela ótica de Paulo Freire e Olavo de Carvalho. Esta poesia tende ao universal e atemporal, ao mesmo tempo em que se confronta a feridas duramente recentes.
Em consequência, Batalha enxerga a periferia enquanto espaço de riqueza. Obviamente, há miséria e desigualdade, porém traduzidas pelas vozes de quem as vive e processadas pela linguagem do slam. No entanto, Burlan, criador de obras violentas quando o deseja (vide a trilogia sobre os assassinatos em sua família), prefere destacar os talentos impressionantes à margem da sociedade. As falas são articuladas, fortes, repletas de metáforas, metonímias, ironias e análises políticas eloquentes. Um pré-adolescente declama seus versos com a destreza de um profissional, enquanto os profissionais ostentam uma obra digna dos grandes escritores. Haveria outro motivo, além do preconceito e falta de oportunidades, para não se considerar versos deste nível como equivalentes, em status e qualidade, à “alta literatura”? O filme condensa arte popular e erudita, as gírias “da quebrada” e o linguajar da norma culta. Acima de tudo, combina o cinema de aparência improvisada (as falas dentro do carro) com uma preparação em que nenhum elemento foge ao controle. Não há qualquer barulho destoante nas vizinhanças, nem improviso na fala dos artistas. O caráter de espetáculo inerente à performance se dilui em meio ao teor de conversa cotidiana. Burlan tensiona os limites do gênero cinematográfico.
Seria razoável sugerir que qualquer filme constitua um ato político, especialmente um filme brasileiro, filmado na periferia da cidade, com produção modesta, a partir de um dispositivo assumidamente simples. Mesmo assim, o resultado constitui um belo exemplar de cinema político no sentido de fazer do ativismo não apenas suas palavras, mas também a sua forma. O cineasta jamais fala em nome destes jovens, embora sua experiência pessoal justificasse colocar a si mesmo em cena. Os recursos de enquadramento, tempo, luz e som explorados no filme dizem muito sobre a crença no potencial destes artistas. Existe um gesto de confiança mútua entre cineasta e personagens: Burlan aposta em cada palavra de seus protagonistas, que oferecem suas imagens, seu bairro, suas casas, para um filme de estrutura livre, cujo resultado era certamente imprevisível em sua origem. Quando se fala de cinema brasileiro de baixo orçamento, um belo exemplar seriam ousadias como esta, que utiliza as limitações a seu favor, de maneira inteligente e criativa, ao invés de emular uma produção maior e empurrar possíveis deficiências para baixo do tapete.
Filme visto online no 15º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em dezembro de 2020.
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