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Sinopse

Uma garota e seus pais são feitos de reféns durante as férias por estranhos que pretendem evitar o apocalipse.

Crítica

Se examinarmos bem a obra do cineasta hindu-americano M. Night Shyamalan à procura de constantes temáticas, certamente nos depararemos logo com o assunto do fim do mundo. Isso esteve em Sinais (2002), no qual a invasão alienígena era anunciada como algo que colocava em xeque a humanidade, e mais diretamente em Fim dos Tempos (2008), filme-catástrofe motivado por um fenômeno estranho que ameaçava a existência humana. O apocalipse também pode ser localizado em outros exemplares de sua cinematografia, em chaves e com magnitudes distintas. Em Batem à Porta, longa-metragem baseado no livro O Chalé no Fim do Mundo, de Paul Tremblay, Shyamalan resolve utilizar novamente o juízo final como mola propulsora de uma trama obscura, construída sobre os pilares do suspense, sobretudo o principal deles: a dúvida.  No início, a pequena Wen (Kristen Cui) brinca na floresta catando gafanhotos para estudar o comportamento dos bichinhos indefesos enquanto eles estão confinados. Adiante notamos que essa apresentação relativamente comum, na verdade, talvez seja uma metáfora religiosa sobre o exercício de tirania das divindades onipotentes. A partir disso, poderemos pensar na criança como equivalente ao Deus que escreve certo por linhas tortas? Ou seria um modo de Shyamalan aludir à “inocência” de uma entidade que não percebe estar fazendo mal às suas frágeis cobaias?

Essas e outras conjecturas ganham terreno à medida que o enredo de Batem à Porta assume seus ares de parábola religiosa. No entanto, Shyamalan é um artesão habilidoso que, antes de qualquer revelação, prefere manter interrogações a respeito de verdades e motivações. Isso desde a abordagem de Wen por Leonard (Dave Bautista), o brutamontes que evidentemente possui traquejo com crianças, algo sentido quando ele coloca em prática o plano absurdo ao qual foi designado em sonho. Esse invasor carrega três companheiros de missão. Shyamalan elabora bem a dúvida (fundamental ao gênero) sobre a natureza dessa interação forçada entre o quarteto de invasores e os pais de Wen, Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge). Os moradores de ocasião de uma cabana afastada são informados de que apenas eles podem deter o apocalipse. Isso mesmo. Mas, para tanto, precisam decidir qual dos três será sacrificado. Evidentemente, a primeira reação da família é refutar completamente as “loucuras” ditas por esse quarteto estranho que carrega armas improvisadas, semelhantes às dos rituais cabalísticos. Shyamalan propõe um jogo de cena provocativo no qual a mudança de foco dentro de um mesmo plano (algo recorrente) cria a sensação de montagem sem corte. Nisso ele reforça o quanto a câmera é poderosa como instrumento de imposição daquilo que devemos enxergar.

Enquanto os invasores demonstram disposição para ir às últimas consequências a fim de seguir um suposto plano divino, Wen, Eric e Andrew ficam entre tentar compreender, manter alguma sanidade nesse cenário tétrico e bolar estratégias para fugir. M. Night Shyamalan cumpre praticamente todos os protocolos dos filmes de invasão de domicílio, do arrombamento da propriedade às dificuldades para encontrar as poucas brechas na vigilância. No entanto, em meio à utilização proposital dos lugares-comuns do filão, ele sinaliza toques propositivos, tais como a angústia do casal-refém por achar que o ataque é motivado por homofobia. Porém, a discussão subliminar a respeito da diversidade, dos preconceitos e de outros temas bastante discutidos na atualidade não assume o protagonismo, sendo mais um pano de fundo diagnóstico da sociedade que precisa evoluir – doente de intolerância ao ponto de ser resetada por Deus, como no Velho Testamento? Nesse ponto, somos levados a imaginar que Batem à Porta pode ser fundamentalmente sobre gente (invasores) buscando conforto em devaneios messiânicos. Contudo, à medida que o tempo passa, o cineasta nos sugere cada vez mais consistentemente a pergunta: será que o juízo final se aproxima e o pouco provável é real? O maior mérito do filme é ter subsídios para ser lido literalmente ou como metáfora. Até que uma confirmação aparece.

Como dito anteriormente, M. Night Shyamalan elabora muito bem as dúvidas, plantando certas inconsistências no discurso e nas ações dos invasores, colocando em suspenso a validade da percepção do homem ferido, desgastando a racionalidade e aumentando a probabilidade do absurdo. O Deus evocado em Batem à Porta é próximo ao retrato pintado no Velho Testamento, vide as pragas derramadas sobre a Terra, a erradicação como forma de recomeçar o projeto humano e a repetição do pedido feito a Abraão para sacrificar o filho como prova de credulidade. Se aquilo que os invasores falam é verdade (e eles tanto creem nisso que estão dispostos a provar com a própria vida), Deus impõe a um casal fragilizado pela discriminação e à menina que passou por maus bocados na infância a difícil tarefa de salvar a humanidade que tanto os menosprezou. No entanto, esse complexo dilema moral sugerido não vira o centro das atenções. Habilidoso, Shyamalan cria/mantém a tensão e indica interesses para ambas as alternativas da trama (a literal e a metafórica). Porém, pena que, assim como em outros filmes, ele insira situações meramente ilustrativas (como os flashbacks) e reincida na velha estratégia de colocar na boca de algum personagem interpretações e conclusões às quais poderíamos perfeitamente chegar sem esse paternalismo todo. Mesmo com essas fraquezas, o filme ainda se sustenta bem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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