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Crítica


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Sinopse

Nana escapa de uma violenta caça anticomunista na Indonésia, mas perde o marido e o pai às guerrilhas. A jovem passa a viver como a segunda esposa de um sudanês milionário que a trata bem, embora tenha uma amante. No entanto, o passado de Nana teima em lhe persegui-la, começando pelos sonhos.

Crítica

Há maneiras muito diferentes de interpretar este drama indonésio. Uma perspectiva diz respeito ao olhar de emancipação feminina: Nana (Happy Salma) é a bela esposa de um homem mais velho, acolhida por ele após o marido desaparecer nos conflitos com a milícia anticomunista (“Sou apenas uma garota do campo, você me salvou. Faz 15 anos que nos casamos”, afirmam os diálogos explicativos). Ela demonstra gratidão ao sujeito que lhe oferece carinho e dinheiro, porém nunca se sente feliz com a rotina entediante do ambiente doméstico. Ao descobrir a existência da amante do Sr. Darga, decide se tornar amiga dela, ao invés de adversária. O discurso evita a rivalidade entre mulheres em nome do amor, preferindo investir nos laços de conveniência e na hipocrisia reinante em sociedades conservadoras. De maneira pouco sutil, a diretora Kamila Andini planta sementes de um feminismo que virá: enquanto a filha pequena sonha em cortar os cabelos bem curtos, “igual ao dos homens”, a avó idosa apela à manutenção dos costumes patriarcais. Em outras palavras, as gerações estão se renovando, e segundo este longa-metragem, caminhamos rumo à igualdade entre os sexos. Before, Now & Then (2022) sustenta um olhar duro, porém otimista ao futuro do país.

Outra possibilidade de leitura se encontra nas regras do melodrama novelesco. Uma dezena de canções é executada na íntegra, sucedendo-se umas às outras com pouco ou nenhum respiro. A fotografia e os figurinos aderem à plasticidade típica das jornadas de amores impossíveis, traições e amantes secretos. As protagonistas apresentam posturas e penteados impecáveis, caminhando lentamente pelos cômodos da casa, parando na posição exata do enquadramento e virando o rosto ao ponto mais favorável da luz. Em provável tentativa de refletir a rigidez dos costumes, a cineasta faz com que as atrizes posem ao enquadramento. Em resposta, elas sustentam a melhor versão possível de si próprias ao julgamento de terceiros. Enquanto espectadores, somos igualmente convidados a julgá-las, embora com respeito e empatia: o público é o único a conhecer as dores e desejos desta mulher. Não se espanta que Ino (Laura Basuki) tenha a profissão de açougueira, cortando brutalmente os pedaços de carne com um machado, e que a esposa responda aos presentes inesperados da amante com outro favor: um cesto de suas melhores frutas e legumes. A gentileza, neste caso, beira o confronto. As duas constituem peças de um sistema, mas nunca vítimas conformadas. Assim, podem estreitar laços para além do romance com Mr. Darga — desenvolvendo, inclusive, uma admiração mútua de fundo homoerótico.

Apesar de certos exageros e maneirismos (seriam apenas traços culturais da cultura indonésia, pouco conhecida por aqui?), o longa-metragem jamais se contenta com estas regras enquanto finalidade em si próprias. Embora não subverta a linguagem acadêmica, Andini tampouco se deslumbra com estes recursos. O aspecto pomposo da casa burguesa se alia a um ritmo lânguido. Assim, os deslocamentos de Nana transmitem peso, esforço, traduzindo a impressão de uma vida pesarosa e desfavorável. A cineasta evita se apiedar sobre a esposa vivendo em meio ao luxo, porém afirma o vazio desta vida, traduzido em símbolos de beleza (o broche, a echarpe) e nas regras de etiqueta durante celebrações. A trilha sonora sugere uma atmosfera aberta à fantasia, propensa ao sonho e à digressão, conforme investe na alusão libidinal. Felizmente, a imagem nunca separa o amor do sexo, nem o afeto do desejo. Os encontros (sonhados? verdadeiros?) com o ex-marido equilibram as noções de perigo, sedução e delírio. Nos devaneios noturnos de Nana, ela consegue trabalhar o tema da morte, algo que recalca durante o dia. Assim, os fantasmas que a perseguem correspondem a uma vertente mais psicológica do que sobrenatural.

A onipresença de sonhos no horizonte do personagem embala o tema da fobia pelo comunismo. Ino, a bela amante e amiga, é apontada na feira como uma possível comunista, devido às roupas que veste. Ora, ele possui trajes praticamente idênticos aos de Nana. O marido teria desaparecido graças à cooperação com o Partido Vermelho, e um colega da vizinhança é denunciado às autoridades por cooperação com este grupo. A desculpa de prevenir uma ameaça  comunista (a mesma que motiva ódio e fetiche no Brasil contemporâneo) serve de pretexto para que as classes dominadoras vigiem e punam os cidadãos, bastando uma mínima acusação para gerar retaliações. A estrutura digna das fábulas (vide a desorientação na floresta, o reencontro do destino) permite trabalhar o imaginário coletivo de uma ideologia, ao invés de sua prática efetiva. Andini estuda o poder sem revelar de perto os poderosos. Ela prefere, neste caso, apurar o reflexo da estrutura opressora nas figuras domésticas, que recebem informações esparsas a respeito do que ocorre no mundo lá fora. As opressões feminina e política se reúnem neste mergulho ao ano de 1966, quando o general Suharto assumiu o poder na Indonésia.

Na fronteira entre estilos e ritmos, Before, Now & Then proporciona estímulos díspares aos olhos ocidentais: algumas cenas podem soar ridículas, no sentido cômico do termo (caso da conclusão), enquanto outras possuem a elegância, o uso de ambientação e trilha sonora digna de Wong Kar-Wai. A diretora se revela pudica na representação dos desejos sexuais, embora registre sem problemas uma cabeça decepada. Ela enxerga em Ino uma mistura de amiga imaginária, ideal de beleza, e o duplo da protagonista (a exemplo das cenas em que ambas se vestem da mesma maneira). Em alguns momentos, o drama sugere que o broche afiado venha a ser utilizado para cometer um assassinato. Há pulsões de todas as naturezas no ar, muitas delas permanecendo no domínio da sugestão. “Por que a culpa sempre segue as mulheres?”, questiona-se a outra, que jamais pede desculpas pelo caso com o marido alheio. Esta seria a principal reivindicação do discurso: um comportamento longe de julgamentos morais, baseado no princípio do prazer — não seria assim que vivem os homens? O ideal de felicidade relacionado ao conforto financeiro de Nana se converte num universo artificial, claustrofóbico. Em sua elegância, o filme atribui um desespero silencioso à aparência de normalidade, algo bastante adequado à representação das ditaduras.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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