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Crítica


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Sinopse

Uma explosão dentro de casa mata o marido de Rani, transformando a viúva na principal suspeita pelo assassinato. Durante as investigações, a jovem aficcionada por romances policiais começa a revelar os detalhes do conturbado relacionamento, incluindo um episódio de infidelidade que mudou sua história.

Crítica

É difícil determinar a qual gênero pertence Beleza Avassaladora (2021). O filme se inicia com a sequência impactante de uma explosão deixando corpos humanos em pedaços, algo digno de um filme de ação. Em seguida, a narrativa se constrói em flashback até este momento, alternando cenas de humor físico pastelão (a jovem noiva e o marido se prendem nas roupas um do outro, sem saberem fazer sexo); um drama profundo com vocação ao melodrama (ambos chorando pelas dificuldades do relacionamento, a trilha sonora melosa cujas letras comentam a situação) e um suspense psicológico perturbador, envolvendo imagens fortes de tortura doméstica. Como de costume nas produções comerciais indianas – pelo menos aquelas que chegam ao nosso lado do globo -, a longa duração não implica numa narrativa arrastada, pelo contrário. Este projeto ágil condensa uma quantidade de reviravoltas, transformações e surpresas suficiente para diversos filmes. A noção de cinema popular, neste caso, corresponde a uma história capaz de fazer rir, chorar, despertar medo e surpreender entre uma cena e outra, num único projeto. Por que escolher entre drama, romance, suspense policial e terror se você pode ter todos ao mesmo tempo?

As distâncias culturais e sociais dificultam a tarefa de avaliar esta complexa crônica de costumes. O principal conflito do roteiro diz respeito a um episódio passageiro de traição. Ele motivará sofrimento, arrependimento, assassinatos, mutilação, espancamento, ameaças de suicídio, de estupro coletivo etc. Trata-se de uma fábula sangrenta de crime e castigo, ou ainda de “código de honra”: um marido tem o direito de se vingar da esposa e do amante, caso acredite ter sido traído? O lado mais dramático do projeto diz respeito ao sofrimento desta ferida incorrigível: uma vez cometido o deslize, a felicidade se torna impossível ao grupo de familiares envolvidos. Talvez ninguém discorde que o diretor Vinil Mathew aborda o dilema de uma sociedade conservadora levada às últimas consequências. As divergências podem decorrer do discurso elaborado por ele a partir desta constatação: o filme denunciaria o machismo, o abuso doméstico e a cegueira do senso de posse sobre a mulher, ou desculparia os personagens agressivos porque, afinal, tinham o direito de limpar a sua honra? O posicionamento permanece ambíguo entre observar a tragédia com recuo, criticando os rumos extremistas adotados pelos personagens, e desculpá-los por estarem agindo “sob forte emoção”. A noção de “crime passional”, questionável por si própria, retorna com forte teor de romantização.

Se fosse um filme brasileiro, seria facilmente taxado de machista, conservador, anacrônico. No entanto, talvez para a sociedade indiana a fábula seja menos agressiva. Entenda-se: as atitudes violentíssimas adotadas pelo marido Rishu (Virkant Massey) com a esposa Rani (Taapsee Pannu) estão longe de qualquer justificativa. Entretanto, o espectador pode identificar outros indícios de que talvez a narrativa fuja ao maniqueísmo. A postura íntegra da mulher durante todo o testemunho, sua inteligência ao contrariar os sogros (“Não é possível: todos querem uma donzela submissa!”) e a esperteza face aos policiais evitam que ela seja percebida como víbora, ou mera vítima do sistema. Após múltiplos ferimentos (queimaduras, perfuração por pregos, queda escada abaixo, além dos danos psicológicos), o marido também terá a sua cota de martírio. Mathew garante que ambos sofram, partindo do princípio que “todo amor possui algumas gotas de sangue”, e “paixão que não leva a loucura não é paixão”. Estes lemas de romance de banca de jornal são extraídos literalmente de um romance de banca de jornal adorado por Rani. Além de referenciar a literatura policial popularesca, o diretor reproduz sua estrutura dentro do filme.

Seria possível exagerar estes princípios com finalidade crítica, ou provocar estranhamento pelo teor bruto das ações dos homens. Ora, o cineasta leva sua trama a sério, acreditando oferecer lições valiosas sobre a persistência do amor apesar das dificuldades. No caminho, minimiza a violência conjugal, mas estima que, quanto maior a dor do casal, maior será o amor decorrente do episódio. A purificação através da morte satisfaz o desejo de vingança, ao contrário do senso de justiça: os policiais incompetentes, que jamais vemos investigando os indícios, estão distantes de descobrir a verdade. Por isso, a certa altura da trama, a verdade simplesmente se revela ao espectador que esperou até então. Descobrimos passo a passo o responsável pela explosão e de que maneira escapou. O aspecto mais incômodo, e também o mais interessante de Beleza Avassaladora reside numa questão de perspectiva: o cineasta apresenta a jornada de um casamento fracassado como se fosse uma bela história de amor. Onde talvez se enxergue a impossibilidade de autonomia feminina e de igualdade entre os gêneros, Mathew detecta uma nova forma de estar juntos sem romper com as regras morais. As casas voam pelos ares, cadáveres se explodem em pedaços, porém a honra religiosa permanece intacta.

Questões ideológicas à parte, o resultado comprova a competência de uma vertente do cinema popular indiano em termos técnicos e narrativos. Os espaços da casa são muito bem filmados e editados, assim como as sequências no mercado e os jogos de olhares entre três sacadas da casa principal. Taapsee Pannu oferece uma atuação excelente, repleta de ambiguidades no olhar, alteradas perigosamente de uma cena para a outra. Apesar das bruscas guinadas de temperamento de Rishu, Vikrant Massey faz com que as atitudes soem condizentes com a trajetória do personagem. Há bastante trilha sonora, mas sem se impor em excesso em termos de volume e significado; enquanto os trabalhos de câmera, iluminação e som direto mergulham o espectador numa cidade verossímil com suas cores, ruídos, poeira. Há uma produção impecável por trás deste grande filme em termos de número de cenários, figurinos, personagens e mudanças de rumo. O resultado é coeso, embora sirva à demonstração condescendente de uma sociedade ainda mais tradicionalista do que a brasileira. Em outras palavras, o projeto oferece uma iniciativa contemporânea típica das plataformas online, dotada da agilidade da captação digital e o ritmo da era da Internet, porém apropriando-se do material das telenovelas de algumas décadas atrás.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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