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Sinopse

Sexagenário desiludido, Victor tem sua vida mudada radicalmente ao conhecer Antoine, empreendedor que propõe uma nova atração de entretenimento à região. Victor, então, revive a semana mais memorável de sua vida, há 40 anos, quando conhecer o amor de sua vida.

Crítica

Além da sintomática tripartição da narrativa – a representação de época, a encenação e a série feita a partir desta – o começo de Belle Époque traz um contraste definidor entre os adequados e desajustados diante das maravilhas tecnológicas dos nossos tempos. O enfado de Victor (Daniel Auteuil) durante um jantar feito de embates de egos e demonstrações passivo-agressivas de indisposições vigentes decorre boa parte da inadequação à contemporaneidade protagonizada por dispositivos eletrônicos e outras traquitanas encarregadas de facilitar o cotidiano de todos. Não à toa o cineasta Nicolas Bedos constrói esse colóquio de amigos justamente a partir dos lugares-comuns da convivência francesa, tão reiterados pelo cinema ao longo dos anos. Seu filme fala não apenas de crises geracionais, de nostalgias sufocantes e da possibilidade de reencontrar no passado algo aparentemente perdido. Há também em jogo a vital importância da encenação, dos valores dramáticos, da capacidade inebriante do cinema de tornar os momentos próximos do sublime.

Em crise matrimonial, Victor é apresentado como um sujeito estagnado, incapaz de desvencilhar-se da pasmaceira que compromete o vínculo com Marianne (Fanny Ardant). Ao contrário do marido, ela é intensificada pelas novidades, tanto que não hesita em trocar os livros de papel e até os seus atendimentos psicológicos profissionais por entretenimento e cont(r)atos virtuais. Porém, Belle Époque ganha outras cores (inclusive literalmente, vide a diferença da paleta entre a verdade e a reminiscência montada como teatro filmado) quando um curioso serviço permite o reencontro palpável com o remoto. Antoine (Guillaume Canet) dirige com mão de ferro um negócio cujo produto é basicamente a possibilidade de reconstruir a época desejada pelo cliente, nos mínimos detalhes, e permitir a ele revivê-la ou, por exemplo, “estar” em meio a uma ação importante ao decurso da História. O conturbado relacionamento desse empresário com a atriz Margot (Doria Tillier) permite um entrelaçamento muito inteligente entre as contingências afetivas ali presentes.

Victor pede para recordar um dia especial em 1974, quando tinha cerca de 20 anos e conheceu o amor de sua vida. Antoine cuida de tudo com níveis obsessivos de detalhamento, assim aproximando-se da figura do cineasta controlador, o Deus querendo ser perfeito, embora tal missão obviamente seja impossível. É belíssima a sequência em que Margot, fazendo-se passar pela jovem Marianne, mistura as falas previamente decoradas com as indiretas ao homem que comanda tudo por detrás de um espelho vazado. Além do encaixe milimétrico de citações, desabafos e réplicas, num movimento que novamente trata de embaralhar a natureza das verdades e das mentiras, a montagem a cargo do trio Anny Danché, Stéphane Garnier e Florent Vassault confere ao momento uma tensão essencial. Inclusive, o discurso de Belle Époque não é apenas eloquente do ponto de vista verbal, haja vista o comportamento da câmera, dispositivo que distingue a dominante emocional e psicológica. Nesse passado revisitado, ela se mexe com elegância, sendo mais estática diante da realidade.

Outro ponto altíssimo de Belle Époque é o elenco. Guillaume Canet e Doria Tillier representam com intensidade seus arquétipos – o controlador e a artista em busca de emancipação –, formando uma dupla simetricamente alinhada com a jovial mulher vivida por Fanny Ardant e o recrudescido idoso interpretado brilhantemente por Daniel Auteuil. O cineasta Nicolas Bedos flerta constantemente com as convenções, chegando a prever inequivocamente desfechos conciliatórios em que amantes descobrem a importância de voltar ao essencial para diminuir as brigas, em prol da convivência menos idealizada, durante a qual memórias se tornam lembretes constantes, não âncoras. Porém, o trajeto guarda surpresas, como quando pretensamente nos encontramos frente a uma virada inesperada, numa trama deliciosa, desdobrada em camadas e rimas bem articuladas. E, para coroar a experiência terna, instigante e genuinamente afetuosa diante das faculdades excepcionais do amor e do cinema, Bedos nos brinda com uma cena lindíssima feita por Ardant e Auteuil. Um instante que poderia soar piegas ou excessivamente meloso, transformado em emocionante por dois gênios.

Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em dezembro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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