float(26) float(7) float(3.7)

Crítica


6

Leitores


7 votos 7.4

Onde Assistir

Sinopse

No século XVII, a jovem Benedetta Carlini é enviada a um convento italiano, crescendo com devoção completa a Deus. Quando a instituição acolhe uma jovem agredida pelo pai, as duas mulheres se aproximam e iniciam um relacionamento proibido. Enquanto isso, Benedetta passa a ter visões eróticas relacionadas a Jesus e apresentar a chagas de Cristo pelo corpo. Alguns enxergam na mulher uma mensageira divina, mas outros a consideram uma farsante perigosa.

Crítica

Benedetta (2021) se inicia com um milagre. Prestes a entrar num convento, a garotinha testemunha uma intervenção que impede os pais de serem atacados por ladrões. Mas seria realmente um gesto divino em benefício da menina inocente, ou uma coincidência de ter ventos e os pássaros se movendo na hora exata da abordagem criminosa? Essa dúvida persistirá ao longo da integralidade da narrativa, tanto para os personagens ao redor da freira quanto para o espectador. A heroína é uma figura agraciada por Deus, ou uma farsante em busca de atenção? O diretor Paul Verhoeven faz questão de sustentar a ambiguidade: uma estátua gigantesca cai sobre a noviça, mas há dúvidas que ela possa ter provocado a queda. Anos depois, as chagas de Cristo aparecem em seu corpo, ainda que ela possa ter infligido os ferimentos a si própria. A freira apresenta cortes profundos na testa, porém a proximidade de um caco de vidro sugere a possível encenação das feridas. Ironicamente, os altos representantes do cristianismo serão as figuras descrentes: preocupados com a repercussão do caso, o núncio Alfonso Giglioli (Lambert Wilson) e a abadessa Felicita (Charlotte Rampling) testam a mulher misteriosa e duvidam de um milagre real. Para o território da fé, a que ponto interessa apurar os fatos? A questão de disputa de narrativas, notícias falsas e autoficção aproxima esta fábula do século XVII dos dias atuais.

O drama adota uma postura interessante, sugerindo que Benedetta seria pura porque lésbica, e não apesar de lésbica. Conforme se relaciona com mulheres (a irmã Bartolomea, interpretada por Daphne Patakia) e tem visões eróticas com Jesus, a dedicação da protagonista à vida monástica se intensifica. Para o cineasta, o carnal nunca se dissocia do espiritual: a mulher que atinge o orgasmo com um consolo improvisado seria, sem falsa ironia, a mais adequada a transmitir amor pelas pessoas ao redor. “Seu corpo é o seu pior inimigo”, defendem as freiras, para quem o caminho para Deus passa necessariamente pelo sofrimento. Na visão do cineasta, adaptando o livro de Judith C. Brown, o percurso até os céus decorre do prazer. Estas duas esferas se confundem na trajetória nada sutil desse longa-metragem: o estímulo erótico dos mamilos leva à mutilação; uma queimadura nas mãos se transforma em prova de amor romântico, e a profunda ferida que sangrar sem parar possui a forma de uma vagina aberta. Existe prazer na dor, algo atestado simbolicamente pelos sonhos eróticos de estupro e violação, assim como orgulho na resistência às provações. Através do exagero voluntário, beirando a caricatura, o filme questiona os limites da abnegação e da tortura em nome de Deus. Para Verhoeven, devido à impossibilidade de concretização, a pulsão será canalizada de formas monstruosas.

Em paralelo, o roteiro critica de maneira firme a hipocrisia religiosa. Parte considerável destes personagens devotos não acredita de fato em milagres, embora defenda essa tese que atrai fiéis à igreja. O dinheiro se converte em motor fundamental de negociações entre os dirigentes, explicitando uma política interna repleta de ambições e golpes baixos. Charlotte Rampling encarna com facilidade a Madre Superiora tão benevolente quanto manipuladora, ajustando o discurso punitivo ou tolerante de acordo com as necessidades. Os padres, bispos, núncios e abadessas combinam entre si uma interpretação favorável no caso Benedetta, tornando-se diretores de sua própria ficção. Nesta trajetória, os personagens caridosos serão aqueles dispostos a iniciar uma caça as bruxas, e aqueles horrorizados com a masturbação serão os primeiros a defender a tortura com instrumentos bárbaros e a fogueira para mulheres “indecentes”. Passados quatro séculos, estes valores carregam um distanciamento histórico evidente, embora dialoguem com a tentativa contemporânea de controlar o corpo feminino, em tese para “protegê-lo”. A liberdade (de escolhas, de ir e vir, de gozar) se torna incompatível com a religião perversa, literalmente castradora (vide a cena com Jesus na cruz). Para o alto escalão do cristianismo, o verdadeiro prazer provém do poder - goza-se pela capacidade de impedir o outro de gozar.

Infelizmente, a discussão se embala na tendência a chocar através de um espetáculo capaz de direcionar as atenções ao diretor. Nesta discussão sobre prazeres, o verdadeiro deleite do autor vaidoso se encontra na capacidade de ir longe, de ser mais ousado. O diretor transforma a jornada da freira num instrumento para perturbar a ordem e incomodar a “família tradicional” - neste sentido, os protestos calorosos em Cannes representam a consagração máxima da obra, que faz da indignação sua principal fonte de marketing. Nota-se o contentamento retórico de expor a nudez das atrizes, de simular estupro e tortura, de imaginá-las penetradas por gigantescas serpentes que lhes sobem pelas pernas. A semelhança desta cena com o clássico A Morte do Demônio (1981) se justifica: o autor empresta ao horror e ao cinema erótico a abordagem explícita do corpo, tanto para criticar o controle da igreja quanto pelo fetiche retórico de fazê-lo. Satisfeito com a reputação de enfant terrible, Verhoeven oferece uma provocação tão certeira quanto fácil: ele e os demais criadores desta possuem plena consciência do furor que causarão a partir da cena de sexo na cruz ou de estupro coletivo. Ao final, todos posam de corajosos e antissistema: o cineasta, por assumir o combate frontal contra o conservadorismo; as atrizes, pela disposição em se exporem sem pudor; e os festivais, por consagrarem estas iniciativas. Convém aos festivais e artistas terem obras que circulem pelas redes sociais e estampem matérias de jornal. Trata-se da lei da oferta e da procura: concebe-se a polêmica visando interlocutores sedentos por isso. Virginie Efira se masturba com estátua da Virgem Maria”. Pronto: compartilhamento, curtidas e engajamento garantidos.

Em outras palavras, a alegre profanidade se viabiliza às custas dos corpos das mulheres, para a glória de uma autoralidade masculina e conservadora (no sentido estrito de defender incondicionalmente os nomes apreciados pela cinefilia clássica). Benedetta aproxima-se do torture porn em diversas circunstâncias, enquanto sustenta o fetiche heterossexual de ver duas mulheres se beijando e fazendo sexo. Ao contrário de Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), Um Fascinante Novo Mundo (2020) e Amonite (2020), dramas que situam o lesbianismo numa esfera respeitosa e íntima, inclusive no retrato do sexo entre mulheres; Verhoeven se aproxima de cineastas como Abdellatif Kechiche, demonstrando com orgulho seu prazer autoritário pela nudez obtida, e pela veracidade de suas cenas. Contestado em Elle (2016) pela insinuação de que o estupro pode ser prazeroso à mulher, ele repete a dose em Benedetta. Jamais enxergaremos o mundo pelo ponto de vista da freira: a narrativa gosta de se distanciar da protagonista e deixar o espectador imaginando suas motivações, fetichizando-a. O holandês questiona a opressão da igreja, mas não se dispõe a abrir mão de sua masculinidade opressora enquanto cineasta.

Filme visto no 29º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *