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Crítica


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Sinopse

Um menino de 10 anos precisa se transformar no "homem da família" quando o pai vai à cidade em busca do trabalho escasso no campo. Em meio a brincadeiras e descobertas, ele se depara com a enfermidade da mãe.  

Crítica

O universo de Bento é o do Brasil profundo. E esse território sertanejo já consagrou figuras fundamentais do nosso cinema, sendo Mazzaropi a principal delas. Mas, diferentemente da atmosfera que envolve as peripécias do matuto metido em situações cômicas, esta é mais realista e menos clownesca. Nela, os interioranos são pobres cuja rotina é marcada pela necessidade de encontrar trabalho em meio à escassez de alternativas. A conjuntura impõe certas coisas, como a ruptura provisória que coloca o pai do protagonista na estrada rumo a algo que o ajude a sustentar a família. A trama é apresentada pelos olhos de Bento (Bernardo Luiz) que, do alto de seus 10 anos, é convocado à difícil tarefa de “ser o homem da casa”. De cara, o que chama positivamente a atenção é o cuidado da cenografia e o esmero da direção de arte para tornar crível esse ambiente. As paredes estampam a miséria dos moradores que resistem e insistem; os personagens utilizam roupas com tons neutros e/ou terrosos, o que permite à fotografia assinada por Larry Machado construir uma atmosfera cuja melancolia passa pela predominância do visual praticamente monocromático. Já Bernardo Luiz é o tipo de ator mirim prodígio que dá conta do recado. Ele vive um protagonista permeável a diversas complexidades.

Com base no conto Os Cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga, o diretor e roteirista Robney Bruno Almeida se debruça sobre a experiência do menino que sonha em ter um cavalo. Numa região como aquela, o equino representa mais do que um instrumento de trabalho ou uma facilidade visando a locomoção nas precárias estradas de chão batido. O bicho é um ideal de liberdade, algo que o realizador enfatiza em diversos momentos, sobretudo ao enxertar nos devaneios de Bento as imagens de galopes e crinas ao vento. Uma vez compreendido todo esse instigante panorama socioemocional que o filme apresenta, nos cabe acompanhar pequenos episódios da vida do protagonista nesse mundo prestes a se tornar mais complexo. Porém, a intensidade dramática dos primeiros minutos não se sustenta por tanto tempo. O desenvolvimento das etapas dessa história de amadurecimento é prejudicado por dois problemas: 1) falta consistência às circunstâncias que o menino vive – por exemplo, a quase morte de um colega tem quase os mesmos matizes da conversa com o avô carismático; 2) o roteiro não consegue costurar as peripécias de Bento a fim de criar uma ideia de unidade. O que há na telona, portanto, são eventos com funções bem específicas, mas não um senso de todo.

Bento poderia explorar melhor as particularidades do mundo sertanejo definido pela pobreza. A mãe vivida por Patricia Saravy é subaproveitada como um elo fragilizado que precisa se manter firme para dar sustentação ao crescimento do filho. Além disso, Robney Bruno Almeida trabalha pouco a doença da mulher como uma bomba relógio que ameaça tornar a vida do protagonista ainda mais pesarosa. Falta liga entre os acontecimentos para que fatos reverberem uns nos outros. Por exemplo, a primeira relação de Bento com a morte – quando o amigo é picado por uma cobra peçonhenta – não é utilizada como preparação do menino para o que está por vir. Não é enfatizada qualquer transformação ou efeito que o evento traumático teve na criança. Da mesma forma, a diferença entre a afetuosidade do avô e a “pentelhice” da vizinha nunca são antagonizados dentro dessa perspectiva infantil em transição, principalmente assim que sua mãe adoece gravemente. Tanto as demonstrações de carinho do idoso quanto as de rigidez da mulher que mora ao lado servem somente como pontuações breves, não tendo importância como partes vitais de um todo. Este é o grande problema de Bento: o fator episódico sabota a ideia de percurso, de algo maior em andamento.

Mesmo com fragilidades narrativas, Bento carrega a vontade perceptível de se afastar daquele tipo de história banal em que todos escancaram o que pensam e sentem. Robney Bruno Almeida lança mão dos chamados tempos mortos – momentos discretos em que aparentemente nada de muito importante está acontecendo –, além de investir na simbologia como estratégia para contemplar a poesia. Beto sonha com a noção de liberdade representada pelos equinos cavalgando no pasto e encontra na relação esporádica com as moscas outro ponto de contato com a vocação da natureza pela liberdade. Aliás, a cobra picando um garoto na beira do rio poderia somar ambiguidade à relação geralmente romantizada do protagonista com a fauna. O cineasta também permite que a trilha sonora envolva o espectador. Pena que falta um pouco de refino nessa relação perseguida entre a materialidade e a imaterialidade, entre aquilo que possui uma função prática e o lirismo disponível a quem tiver pronto para enxergar. No fim das contas, tudo existe para Bento amadurecer rápido, seja diante das responsabilidades precoces ou mesmo da morte – um lembrete do caráter transitório de praticamente tudo. Robney Bruno Almeida desenha um panorama simbólico rico, mas permanece mais preso ao que é tangível.

Filme visto durante o 1º Festival Internacional de Cinema de Goiânia, em maio de 2022

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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