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Sinopse

Berlim, década de 1920. Um cidadão, após cumprir pena durante quatro anos por assassinato, se vê livre para começar uma nova vida.

Crítica

O protagonista desta história, o jovem guineense Francis (Welket Bungué), nasce bom, mas a sociedade o corrompe. “Ele só queria ser um homem decente”, repete uma dezena de vezes a narradora. O personagem, confrontado aos inúmeros problemas que lhe aparecem, repete aos gritos a vontade de ser uma pessoa boa. O conteúdo ostensivamente moral do livro de Alfred Döblin, publicado há 91 anos, ganha nova versão adaptada a uma Berlim contemporânea: os personagens vivem em bares de strip-tease, frequentam prostitutas, planejam roubos, traficam drogas, flertam por aplicativos de celular. Partindo do livro original, Franz/Francis tornou-se um refugiado negro que perde a esposa durante a travessia ilegal à Europa. O diretor Burhan Qurbani acredita que os grandes embates morais dos nossos tempos envolvem a questão migratória, racial, sexual e LGBT, adequando o conteúdo a uma sociedade múltipla, porém de laços sociais precarizados.

A linguagem também se adapta ao ritmo do século XXI, incluindo luzes em neon, câmera lenta e giratória, numa estética polida e sobrecarregada que remete aos videoclipes. Dois símbolos recorrentes permitem unificar a epopeia de Francis na Alemanha: a metáfora do enfrentamento de um touro – que se metamorfoseia na imagem do inimigo – e uma cruz religiosa, em rosa neon, sinal tanto da adequação aos costumes quanto de uma perversão estética do sagrado. Berlin Alexanderplatz (2020) impressiona pelo tamanho de sua produção, marcada por dezenas de cenários, festas com centenas de figurantes, câmeras estabilizadas ou sobre gruas aplicadas a usinas, casas noturnas, parques. Cada cenário é filmado com preciosismo e riqueza de detalhes, em provável tentativa de corresponder à jornada extremista de seu personagem. Em alguns momentos, Qurbani flerta com o cinema de Gaspar Noé, outro cineasta fascinado pelo mundo cão em cores fluorescentes. Francis cairá, porém com toda a beleza de um cenário finamente iluminado.

Sem dinheiro, sem documentos e sem dominar a língua local, o protagonista se vê obrigado a aceitar qualquer oportunidade que lhe apareça, por mais arriscada que seja. O filme trata de isentar seu personagem de julgamentos morais, transferidos no entanto à sociedade em que vive. Este é um mundo de tentações e prazeres (sexo fácil, drogas e violência), de modo que o homem ficará dividido entre um anjo e um demônio. Mieze (Jella Haase), prostituta e namorada, ostentando um corte de cabelo em estilo Cabaret (1972) e gestos carinhosos, funciona também como narradora: é ela quem despeja o conteúdo bíblico em voz vaporosa, parte infantil, parte sensual. Enquanto o anjo aconselha Francis a seguir pelo bom caminho, o psicopata Reinhold (Albrecht Shuch), de corpo retorcido e expressão enlouquecida no rosto, abriga o refugiado em sua casa e lhe fornece pequenos trabalhos. Todas as lendas e mitologias clássicas sobre pessoas se vendendo a demônios, sendo seduzidas pelo diabo ou ignorando os conselhos bondosos de fadas ou anjos se condensam nesta única jornada universal.

Por um lado, é interessante que o protótipo do homem comum seja identificado com um homem africano em condição ilegal. Por outro lado, a insistência em prenunciar a tragédia – somos lembrados pela narração, com insistência, que ele fracassará e será tragado pela cidade – resume o homem à condição de vítima. Por mais que se bata, se preserve e depois se entregue ao crime como vingança simbólica pela bondade não recompensada, ele se tornará impotente diante das agruras do mundo. A obra original possuía uma conclusão fortemente otimista, acreditando no reformismo do ser humano após enfrentar o sofrimento. A versão de 2020 prefere um olhar mais niilista, diluindo o moralismo da conclusão numa trajetória de possibilidades abertas. Bungué encarna o personagem com o senso de dignidade de um herói clássico, sendo o personagem mais claramente naturalista num mar de metáforas do bem e do mal. Ele se sai bem numa história feita sobre ele, e não do ponto de vista dele. O mártir dos novos tempos é visto de fora, enquanto estudo de caso.

Até por isso, o resultado soa tão fortemente condicionado à moral binária e maniqueísta. Francis caminha ora do lado do bem, ora do lado do mal, mas não consegue efetuar a síntese harmônica entre as duas possibilidades. Qurbani ainda inclui boas digressões sobre a noção de “identidade alemã”, com pelo menos duas tiradas a respeito do “German Dream” e da frase “Eu sou a Alemanha” aplicada a grupos de refugiados africanos, que servem a introduzir a questão do nacionalismo pós-guerra numa terra repleta de estrangeiros. Existe uma saudável provocação sociopolítica neste projeto, ainda que simplificada pela dinâmica das boas intenções. O projeto cria personagens interessantes dentro de um mundo complexo, para então contentar-se com discussões sobre o caminho certo a tomar em relação a si próprio, e não à sociedade. No final, é isso que importa ao discurso de Berlin Alexanderplatz: que cada um mantenha seu próprio orgulho e sua moral intactos, ao invés de agir em nome de algum progresso social maior. A Berlim dos anos 2020 torna-se cenário, e não a fonte e/ou consequência da crise existencial de Francis.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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