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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Miguel é um jovem solitário, cuja vida consiste em uma rotina monótona que envolve trabalhar em um escritório de serviços de digitação, cuidar da mãe e sonhar com Carmela, uma de suas clientes habituais. Essa rotina muda para sempre quando ele encontra sua mãe morta no chão da sala de sua casa.

Crítica

Existe algo nos conflitos de Detrás de la Montaña (2018) que dialoga diretamente com o imaginário do cinema brasileiro. A profissão de Miguel (Benny Emmanuel), um escritor de cartas para analfabetos, que às vezes adultera o conteúdo dos textos, remete à Isadora de Central do Brasil (1998). A cena caótica da descoberta da mãe em casa pelos olhos de um adolescente, com a câmera tremida e a posterior busca pelo pai entra em sintonia com Sócrates (2018). A narrativa girando em torno da busca por um familiar ausente, sobre quem se colhe informações embora ele esteja ausente nas imagens, reproduz a estrutura adotada por Cidade Pássaro (2020). Na verdade, a história de Miguel se insire num contexto latino-americano mais amplo de violência, desigualdade social e criminalidade. Quando perde a mãe e se vê sozinho no mundo, o adolescente percebe que não dispõe de nenhuma estrutura de suporte – seja família, amigos, escola, igreja, governo. Por isso, ele precisa se reinventar numa nova cidade, forjando um passado alternativo enquanto busca sorrateiramente pelo pai que o abandonou durante o nascimento. No território de afinidades, o peruano Rosa Chumbe (2015) e o colombiano Los Días de la Ballena (2019) captam semelhante sensação de abandono e sobrevivência nas cidades ao centro e sul do continente.

O diretor David R. Romay trabalha os códigos clássicos do realismo social, adotando uma câmera fluida, sem tremer em excesso, disposta a acompanhar o protagonista pelas andanças através do México. Ao invés de cenários embelezados por luzes artificiais ou figurinos chamativos, prefere se focar no interior de um país pobre, com casas abandonadas, motéis vazios, bares desérticos, lojas sem clientes. Miguel veste roupas grandes demais para o corpo, reforçando a aparência franzina, tímida, como se o rapaz buscasse se esconder dentro do casaco. Os dias são nublados, a comida não parece muito apetitosa, os trabalhos são repetitivos e pouco recompensadores. Já os namoros ocorrem de modo fortuitos, por desespero ou solidão. Através de imagens silenciosas e longas, o filme desenvolve uma nostalgia sem perspectivas reais de melhoria, mas tampouco acometida pelo miserabilismo ou autopiedade. O protagonista constitui um corpo em movimento, batendo nas portas das casas e perguntando a anônimos por falta de melhor estratégia. As andanças soam extensas, pouco produtivas e mesmo cíclicas, porém é necessário se manter em movimento. Neste sentido, uma cena no deserto, com Miguel carregando uma cadeira de balanço nas costas, sintetiza a mistura de realismo cru com os traços de realismo fantástico.

Detrás de la Montaña passa a adquirir tons ainda mais curiosos quando combina dois subgêneros dentro do drama: primeiro, o road movie, e depois, o faroeste. Ao imergir num “México profundo”, começa a valorizar a sensação do deslocamento enquanto valor em si, ao invés de prometer ao protagonista (e ao espectador, por extensão) uma recompensa precisa. Miguel está disposto a viajar para qualquer cidade, contanto que encontre novas pistas do pai, da garota por quem se interessa, e de alguma oportunidade de emprego. Esta liberdade de partir, sem malas nem satisfações a dar, aproxima o resultado do road movie, ainda que pouco tempo seja dedicado de fato às estradas. Quanto ao faroeste, o roteiro desenha a promessa gradual de um enfrentamento entre Miguel e o pai. O garoto adquire uma arma, passa a encará-la com frequência, e depois a carregá-la consigo. Os indícios da proximidade com o homem ausente aumentam, assim como a violência nas interações do adolescente. Um passeio pela estrada, um momento a dois no deserto e um crucifixo num local abandonado tornam-se o palco ideal para um acerto de contas literalmente crepuscular, conforme o sol baixa no horizonte. Os códigos do cinema clássico, que valorizam a honra e o espetáculo, se fundem de maneira bela e orgânica com o pequeno drama de um garoto comum.

A narrativa talvez seja prejudicada por algumas conveniências, justificáveis pela necessidade de provocar conflitos, porém acessórias diante da verossimilhança buscada. O fato de o pai de Miguel morar na mesma cidade onde a garota de seus sonhos habita constitui uma conveniência mal justificada pelo roteiro. A descoberta da loja de móveis com o sobrenome do pai, além da plaquinha de busca por um novo funcionário num comércio à beira da falência tampouco ajuda na sugestão do acaso. O encontro com um personagem importante no momento em que este manifesta uma doença terminal representa outra “ajuda” oferecida pelo roteiro a Miguel, de modo a catalisar os dilemas e reunir diversos conflitos (amorosos, familiares e financeiros) numa única esfera. Felizmente, o diretor sabe abordar estes momentos de maneira diminuta, sem senso de espetáculo. A reunião entre três gerações torna-se aceitável pela capacidade da direção em retirar diálogos óbvios e poupar o público de recompensas emocionais melodramáticas. Enquanto nos apresenta uma história marcada por coincidências, David R. Romay não se priva de introduzir alguns golpes do destino.

Ao menos, Detrás de la Montaña se apoia numa delicada poesia que impregna diversas sequências: a caminhada de Miguel pela avenida rumo à loja de móveis, a ligação telefônica com um quadro kitsch de paisagem ao fundo, a dança de dois casais no bar vazio, a namorada Carmela (Renée Sabina) que, quando convidada a pegar seus pertences para se mudar, levanta-se imediatamente e responde, de mãos vazias: “Eu não tenho nada para levar”. Existe uma tristeza finamente orquestrada pelas refeições precárias dentro do quarto de hotel, pela vizinha que invade uma casa vazia para ler um livro, pelo “treino” do jovem em matar um cachorro antes de conseguir matar o pai. A trilha sonora invade cenas pontuais, de maneira tão discreta quanto perturbadora (o diretor prefere ruídos a música), enquanto os sentimentos do garoto se tornam ambíguos: ele procura o pai por amor ou ódio? Quando encontrá-lo, dará um tiro ou um abraço apertado? Ambas as possibilidades se traduzem no olhar potente de Benny Emmanuel, jovem intérprete de talento. Ele combina a obstinação do garoto com a fragilidade das falas e do corpo, fazendo de Miguel um garoto ao mesmo tempo voraz e inocente, adulto e infantil. Há uma riqueza notável na construção imagética, discursiva e psicológica deste filme, comprovando o talento do cineasta mexicano.

Filme visto online no We Are One: A Global Film Festival, em junho de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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