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Sinopse

A pequena cidade de Oak Springs está em vias de desaparecimento. A maioria dos moradores já se mudou, os comércios estão fechando as portas, e apenas os moradores idosos resistem à extinção do local onde sempre viveram. Quando um magnata misterioso abre um bingo gigantesco na cidade, Lupita e seus amigos desconfiam da iniciativa, mas logo os altos prêmios atraem os habitantes em dificuldade financeira. Eles mal desconfiam que a generosidade do empresário esconde objetivos muito mais sombrios.

Crítica

À primeira vista, o projeto Welcome to the Blumhouse possui nobres intenções: enquanto a produtora investe em projetos maiores, apresentando exemplares de terror de alta qualidade (O Homem Invisível, 2020, A Caçada, 2020, Nós, 2019, além da saga Uma Noite de Crime, 2013-2021), investe paralelamente em obras de baixo orçamento, com artistas pouco conhecidos, na intenção de formá-los e testar sua capacidade de comandar, no futuro, longas-metragens de grande porte - afinal, o horror comercial não pode viver apenas de James Wan, Jordan Peele e Leigh Whannell. Quando o primeiro “lote" de filmes foi apresentado, com quatro estreias num único mês, em 2020, o resultado foi decepcionante: eram obras fraquíssimas, sem ousadia nem refinamento estético. O baixo orçamento, que poderia resultar em tomada de riscos e experimentações dentro do cinema de gênero, cedeu espaço a longas-metragens um tanto amadores, dotados de roteiros fracos e finalização abaixo do padrão Blumhouse - e mesmo das criações originais Amazon Prime. A repercussão negativa do quarteto preparou o espectador para mudanças e melhorias na segunda “temporada", com quatro novos filmes lançados em 2021. Ora, as expectativas para o grupo de estreias voltam a ser baixas, julgando pela estreia de Bingo Hell (2021), comédia de terror dirigida por Gigi Saul Guerrero.

Os autores investem numa atmosfera ostensivamente trash - o que nunca deve ser confundido com malfeito ou realizado às pressas. Partindo de um pequeno bairro de classe média-baixa nos Estados Unidos, dominado por idosos latinos e negros, abre-se o caminho para uma crítica à gentrificação, o descaso com descendentes de imigrantes e à exploração capitalista a partir de um bingo luxuoso que ocupa as ruas quase desertas do Barrio. No entanto, estes fatores permanecem em segundo plano: a cineasta perde a oportunidade de contextualizar o espaço, de questionar causas ou consequências do fenômeno. A política está ausente da discussão a respeito da pobreza - a resistência dos habitantes se condiciona à mera força de vontade. É difícil saber do que vivem, ou que medidas efetivas têm tomado para resistir, para além da organização esporádica de um pequeno bingo entre amigos. A religião desempenha papel ínfimo (o padre exerce influência nula sobre os moradores); o único jovem é um garoto negro e ladrão, enquanto os senhores idosos se restringem a uma postura conformista. Quando começam a morrer misteriosamente, ninguém bate à porta para ver se estão bem. A descoberta de um cadáver é mantida em segredo por Lupita (Adriana Barraza), que sequer cogita chamar a polícia ou comunicar os vizinhos. O filme demonstra preocupação mínima com os personagens, assim como eles se importam pouco uns com os outros. O discurso de união se contrasta com a prática individualista.

Esteticamente, o longa-metragem impressiona pelos piores motivos. É estranhíssimo pensar que este roteiro escrito a seis mãos tenha sido discutido, aprimorado e aprovado pelos produtores. Ele possui a aparência de um primeiro tratamento filmado de modo impessoal, sem dedicação. Guerrero hesita quanto ao estilo e ao conceito, trabalhando ora com câmera tremida e enquadramento angulado, ora com banais planos e contra-planos. Os close-ups dominam os diálogos, e cada chefe de equipe aparenta trabalhar num projeto distinto, sem comunicação interna: a montagem picota as cenas a esmo, em provável tentativa de gerar dinamismo, embora produza inúmeros erros de continuidade e quebras de eixo. O trabalho de iluminação hesita entre o naturalismo, o realismo fantástico e um estilo grotesco multicolorido, com neons fortes que saem do bingo luxuoso para entrar na casa dos personagens. Sequências como a crise de Raquel (Kelly Murtagh) em frente ao espelho resultam em escolhas constrangedoras de direção de atores, montagem, fotografia e som. O escopo da produção soa insuficiente até para as modestas ambições em jogo: o bingo milionário é menos luxuoso do que deveria ser; a riqueza repentina de Raquel se traduz no passeio com algumas sacolas de compras, e o aceno à gentrificação se limita à única esquina onde surge um comércio novo. Seja por escolha, ou falta da mesma, a câmera nunca explora o bairro, as durações, nem provoca tensão quanto ao próximo acontecimento: as mortes são raras e previsíveis.

Ainda mais questionável seria o discurso veiculado. Face ao pequeno grupo de minorias sociais, o filme insiste que o grande problema se encontra no desejo de enriquecer - em outras palavras, a culpa pela situação adversa é atribuída aos pobres. O vilão Mr. Big (Richard Brake) acompanha cada assassinato de um sermão moralista: “Eu me alimento de almas desesperadas”, “Não importa o quanto você tenha, sempre vai sobrar alguma coisinha que ainda deseje”. Adiante, Lupita atribui a culpa pela depredação de Oak Springs a si própria: “Eu deixei isso acontecer”. “O dinheiro não é real, ele não pode resolver os seus problemas”, prega o padre, antes de uma patética cena de dinheiro queimado, sugerindo a irônica libertação dos cidadãos miseráveis. Na canção final, as letras são óbvias: “Dinheiro não consegue trazer de volta a sua juventude quando for velho”. Ou seja, dinheiro não traz felicidade, amizades sim. A mensagem pueril resulta contraproducente diante de graves aspectos socioeconômicos dos Estados Unidos do século XXI. O Bingo Macabro se converte num inesperado horror cristão, onde o adversário representa o diabo oferecendo dinheiro em troca das almas, atacando aqueles que aceitam o trato. Existe um aspecto perverso neste punitivismo: Lupita e seus amigos “aprendem uma lição” através do caso sangrento. A anticlimática conclusão pode ser lida como um sinal de derrota para os personagens e para o filme, embora os idosos mantenham um sorriso no rosto. Triste é o cinema incapaz de promover reflexões, ou lançar metáforas e finais abertos a partir de um tema tão complexo.

Resta o sentimento de desperdício: teria sido satisfatório ver uma cineasta de origem latina oferecer um tratamento respeitoso da comunidade de língua hispânica norte-americana. Em paralelo, a dupla formada pelas talentosas Adriana Barraza e L. Scott Caldwell poderia proporcionar embates mais fortes do que as simples conversas de comadre propostas pelo roteiro. Nem o aspecto de horror salva a experiência: aproveita-se pouco da relação com o dinheiro, ou então do sangue e das vísceras: na hora da carnificina, o projeto trash se envergonha e esconde a mutilação, preferindo se focar na gosma esverdeada pelo chão e nas bolinhas de bingo formando a frase “Você perdeu”, enquanto uma voz repete, risivelmente: “Você perdeu”, caso tenham ficado dúvidas. O fato de os personagens serem idosos se torna irrelevante, perdendo a oportunidade de explorar a proximidade da morte dentro de um gênero que aborda, por definição, o medo do término, tão bem aproveitado em A Visita (2015), da mesma Blumhouse Pictures. Caso chegasse ao streaming sem tamanho investimento de marketing, com produtores famosos nos créditos, O Bingo Macabro se confundiria com uma obra B (ou C), concebida por amadores, do tipo que as plataformas online para criar volume e dar a impressão de que o assinante dispõe de fartos conteúdos pelo preço da mensalidade. Não foi desta vez que o projeto Welcome to the Blumhouse comprovou seu potencial criativo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
2
Leonardo Ribeiro
3
MÉDIA
2.5

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