Sinopse
Bird: Aos 12 anos, a menina Bailey mora com o irmão Hunter e o pai Bug, que os cria sozinho em uma ocupação na região norte de Kent, na Inglaterra. Bug não tem muito tempo para os filhos, então Bailey, que está se aproximando da puberdade, procura atenção e aventura em outro lugar, com outras pessoas. Selecionado para o Festival do Rio 2024.
Crítica
Um dos principais temas da obra da cineasta britânica Andrea Arnold é a infância/adolescência abandonada. São comuns em seus filmes os jovens à deriva num mundo negligente. Em WASP (2002) ela falava de uma mãe solo recém-adulta tentando recuperar o tempo sequestrado pela maternidade, ainda que às custas de desamparar pontualmente os próprios filhos. Em Aquário (2009) a protagonista era uma garota dona de sérias questões a resolver com a mãe. Já em Docinho da América (2016) um grupo de rapazes e moças desajustados se unia num road movie em busca de identidade e libertação. Com Bird a realizadora volta a colocar a sua câmera em contato com o mundo precário dos conjuntos habitacionais ingleses para contar a história de Bailey (Nykiya Adams). Aos 12 anos de idade, a garota vive com o pai, Bug (Barry Keoghan), em condições, no mínimo, insalubres. Indignada pelo anúncio de que Bug vai se casar novamente – consequentemente, o apartamento ficará ainda menor a partir disso –, ela vira um corpo em estado de rebeldia. Mesmo que não tenha todas as ferramentas emocionais e psicológicas para lidar com o conturbado universo adulto, ela precisa amadurecer rápido e se apropriar de instrumentos garantidores de autonomia numa realidade em que depender do outro não é opção. Bug é imaturo para educar alguém, assim como vários outros pais do cinema de Arnold.
Visualmente falando, Bird propõe o retrato cru de uma realidade feita de pais e mães pouco diligentes quanto às necessidades dos seus filhos em crescimento. Bailey é como tantos outros criados sem qualquer zelo na vizinhança, um produto desse meio em que a sexualização precoce é vista como estratégia para falsear a maturidade. Num dos momentos em que precisa marcar posição, Bailey diz não ser mais virgem. Sem fazer qualquer julgamento moral a respeito do ato sexual em si, Arnold imputa à gravidez precoce um dos motivos para a manutenção da miserabilidade no local. Bug teve seus filhos quando era novo demais para ser responsável, algo que tende a ser reproduzido por seus herdeiros diretos num círculo vicioso. Em algum ponto podemos nos perguntar: “porque Bailey não vai morar com a mãe, a isso preferindo se submeter a dormir num colchão velho e ter a sua intimidade preservada apenas por um lençol esticado?”. Andrea Arnold protela propositalmente o ato de nos apresentar à realidade ainda mais difícil dessa mãe atolada em decadência e submissão. Com isso se concretiza a constatação de que na realidade pobre e sem perspectivas na qual os personagens coexistem nem tudo é uma questão de escolha. Há coisas que podem ou não ser feitas nesse ecossistema onde a carência é crônica. Bailey, seus irmãos, os pais e os amigos são encarados como frutos da abandonos sistemáticos.
Com uma câmera sempre nervosa acompanhando as perambulações de Bailey, Andrea Arnold faz um retrato ao mesmo tempo afetivo e desiludido de pessoas atoladas numa miséria que elas reproduzem automaticamente. Mas, eis que a dureza do cotidiano é quebrada pela entrada em cena de um personagem misterioso, de algo relativo em meio a tantas certezas ásperas. Surgido como uma miragem enquanto Bailey fotografa a curiosidade das vacas, Bird (Franz Rogowski) é um sujeito enigmático, supostamente também fruto da ausência familiar. Do ponto de vista prático, ele é um rapaz à procura dos pais sumidos. No entanto, seu comportamento adiciona uma camada poética e potencialmente irreal em Bird. Franz Rogowski interpreta com excelência esse homem indecifrável de falas misteriosas e comportamentos não menos intrigantes. Ele é o elemento de ruptura com o determinismo da comunidade. Adquirindo o aspecto figurado de um anjo da guarda, aparentemente tendo a capacidade de influenciar animais como se fosse um enviado da natureza, o forasteiro se torna peça vital para a protagonista enfrentar os seus problemas imediatos. Ele seve como suporte às atitudes que podem encaminhar a emancipação emocional e psicológica de Bailey. São lindas as imagens da protagonista enxergado esse forasteiro no topo do prédio vizinho. Nelas, o simbolismo ultrapassa a realidade e a ressignifica.
Como enxergamos tudo pelos olhos inflamados da menina revoltada com o iminente casamento do pai e marcada pela incapacidade de cuidados da mãe, é natural que julguemos os demais personagens a partir da perspectiva de Bailey. No entanto, Andrea Arnold toma o cuidado de não cair no maniqueísmo, ao menos não alimentando a ideia dos vilões desalmados para garantir alvos à nossa indignação. A mãe inepta para cuidar das crianças é também vítima, da própria tendência autodestruitiva e do namorado agressor. A noiva do pai de Bailey é vista pela menina como problema, mas em nenhum momento essa candidata a madrasta toma atitudes negativas em relação à protagonista. O próprio Bug, ainda que seja um porra-louca incorrigível, não é um monstro, mas um sujeito cheio de impossibilidades. Aos poucos, a cineasta vai mostrando ao espectador que certas preconcepções de Bailey são imprecisas, como observamos perto do fim da história. Como quando Bug demonstra uma capacidade inesperada de compreensão diante do desespero do filho em sofrimento – a esperança de que os efeitos negativos da sina sejam amenizados com carinho e união. Enquanto isso, Bird é o amigo-guardião providencial, metaforicamente a ave que limpa o horizonte da infestação de insetos – Bug, esse pai representativo, tem apelido de inseto e o corpo cheio de tatuagens desses bichos.
Andrea Arnold cria cenas emocionalmente potentes em Bird com a ajuda de músicas conhecidas. Numa delas, Bailey testemunha o pai e os amigos barra-pesada cantando “Yellow”, uma das canções de sucesso mais melosas da banda Codplay. Com ela, os marmanjos querem estimular um sapo a secretar um alucinógeno capaz de bancar o casamento. Na outra, perto do encerramento do longa-metragem, Arnold se vale de “Lucky Man”, do The Verve, para mostrar de maneira muito singela e comovente a improvável união da família encarada até ali como disfuncional. Além disso, a cineasta se vale dos pássaros como metáfora óbvia dos anseios de liberdade da protagonista. Porém, Arnold adiciona o fantástico como elemento poético para permitir a intromissão da esperança nessa realidade de infâncias/adolescências abandonadas. Com sensibilidade, Arnold nos faz questionar a existência de Bird como uma pessoa real. Será que ele é verdadeiramente um agente sobre-humano capacitado a reverter a dureza do cotidiano? E mesmo quando mostra a metamorfose literal, nem assim a britânica inviabiliza a dúvida. Será que o homem transformado em pássaro não é a projeção simbólica dos desejos de Bailey? Com interpretações excepcionais de Barry Keoghan e Franz Rogowski, o filme extrai beleza e afetuosidade do contexto no qual havia espaço somente à reprodução do desamparo.
Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.
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