float(5) float(1) float(5)

Crítica


5

Leitores


1 voto 10

Onde Assistir

Sinopse

Depois de anos morando na Alemanha, Wessi visita sua irmã, Ossi, em sua terra natal, a Mongólia. O lar de Ossi pode ser pequeno, mas ela convida todos os vizinhos a dar as boas-vindas à irmã perdida - para comer, beber e comemorar.

Crítica

Esta ficção passada na Mongólia pode despertar a atenção inicialmente pelo viés antropológico, uma vez que destina as imagens do país asiático ao olhar estrangeiro. A narrativa traz o ponto de vista de Wessi (Uisenma Borchu), mulher nascida na Mongólia junto da irmã, porém criada na Alemanha. Décadas mais tarde, ela fala mal a língua natal e esqueceu os principais costumes locais. Portanto, quando decide reencontrar a irmã Ossi (Gunsmaa Tsogzol), torna-se uma estrangeira em seu próprio país. Esta será a sua oportunidade de redescobrir as comidas, as roupas, o clima e os costumes, além da maneira possessiva como os homens tratam as mulheres. “É fácil encontrar um homem, eles são os mesmos em qualquer lugar. Mas quem diz que eu estou procurando por um?”, argumenta a mulher forte e destemida, que acaba de se livrar de um relacionamento abusivo. Ao espectador europeu, ou ocidental em geral, cabe descobrir o país exótico pela ótica de uma mulher empoderada.

Borchu, também diretora e roteirista deste projeto, aproveita ao máximo elementos in loco da realidade mongol. A cineasta aposta na força das cenas que não poderiam ser falseadas, especialmente relacionadas a animais e bebês. Enquanto o encontro com moradores locais traz bebês chorando, com os narizes sujos; fora das tendas as cabras lutam entre si, os cavalos fazem sexo e os homens abatem os animais para o almoço – em plano-sequência e enquadramento aberto, de modo a ressaltar a veracidade da cena. Diversos moradores locais, claramente não-atores, são chamados para representarem a comunidade. A cineasta de formação documental transparece o desejo de “fazer real”, o que também inclui uma crua cena de sexo envolvendo a si mesma, ainda na Alemanha, com o namorado possessivo interpretado por Franz Rogowski. A montagem opta pela suspensão brusca das cenas e pela ausência de sentimentalismo: evita-se lágrimas e gritos, tanto em momentos de reencontros felizes quanto durante um estupro.

Enquanto apreende a natureza local com precisão (vide a câmera na mão sem tremer em excesso, efetuando bom uso da luz natural), Borchu opta por saídas poéticas ao discutir a condição feminina. Uma cena de violência contra Wessi é retratada por meio da montagem fragmentada, alternando flashes do ato real com inserções de cenas sonhadas (ou seja, o corpo sofre ao passo que a mente reage), enquanto uma poesia é narrada em sobreposição à imagem. Diversos diálogos entre as irmãs são apresentados em off, sem relação com a cena correspondente, pairando como reflexões atemporais: “Minha terra não era a sua terra, eu não respirava o mesmo ar que você. Mas o nosso coração é o mesmo”, afirma a voz feminina. Black Milk (2020) possui talento para a construção de um lirismo bruto, tão silencioso quanto concreto, a exemplo da sequência de Wessi literalmente comendo terra. O filme rompe com a equivalência entre feminilidade e delicadeza: embora sofram a opressão dos homens, as duas irmãs lidam com seus conflitos de maneira áspera, e os recursos visuais seguem pelo mesmo caminho.

Apesar de tamanhas qualidades, à medida que a narrativa avança, o desenvolvimento de Wessi e Ossi se torna cada vez mais questionável. A irmã estrangeira desenvolve uma paixão obsessiva por um homem local, mais velho e sem interesse real por ela. A mais nova passa a defender a tradição, o valor de esperar pelo retorno do marido alcoólatra para então preparar o jantar. Elas brigam por razões incompreensíveis e fúteis, que são citadas pela primeira vez e então explodem dentro da mesma sequência (Wessi é considerada “bagunceira demais”, algo que não tínhamos visto até então). O projeto parece ter sentido a falta de conflitos, introduzindo-os de modo desajeitado, como um pensamento posterior. O papel do estupro é esquecido, e o sogro, ausente durante três quartos da trama, reaparece quando sua presença se torna conveniente à narrativa. A jovem mongol-alemã fica reduzida ao novo caso de amor, sem pensar em sua vida na Alemanha, em seus desejos para o futuro, em suas aspirações profissionais. Ora, de repente Wessi descobriria a vocação para se tornar dona de casa, como a irmã?

A conclusão opta por soluções ainda mais surpreendentes, quando as mulheres se entregam à paixão cega pelos homens, chorando a tristeza de serem rejeitadas. O abraço carinhoso entre as duas não sela uma proteção, apenas uma constatação fatalista sobre suas condições de inferioridade social. Assim como as duas mulheres, o filme que se inicia cheio de vontade de afrontar o mundo termina por se domesticar: a irmã mongol toma a coragem de abater um animal pela primeira vez, porém o faz em segredo, chorando. A outra, ao invés de refletir sobre o óbvio problema de relacionamento com homens – incluindo conflitos paternos que precisariam de alguma forma de resolução – acaba repetindo em solo estrangeiro o comportamento dependente que manifestava na Alemanha. A noção de paz, ou ao menos de amenização dos conflitos, se encontra na conformidade às regras patriarcais. O final aberto em que se chora a tristeza do amante desaparecido pode ser interpretada como machista e fatalista. No entanto, caberia a um homem, a exemplo do autor deste texto, criticar uma diretora e roteirista mulher por uma narrativa de aparência machista? Assim como o “leite negro” que sairia dos seios das mulheres dominadas – bela metáfora evocada na primeira metade -, a conclusão deixa um gosto amargo quanto às perspectivas de emancipação feminina.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *