Crítica
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Sinopse
A rotina de dois grupos de mineradores em dois cantos do globo: na Sérvia e no Suriname. Estes retratos especulares constroem uma radical imersão no universo do trabalho, investigando com paciência o desgaste dos corpos e a relação entre o tempo das máquinas e o dos homens.
Crítica
A câmera está presente, mas é quase como se não estivesse. Ela está atrás, imperceptível, observando a distância. Sua interferência é mínima e, por se tratar de um documentário, este é um mérito que precisa ser apontado. O cinema que se propõe a fazer um registro de uma situação, episódio ou jornada tem esse preço a pagar: basta que as luzes sejam acesas para que o comportamento daqueles que estão no foco das atenções seja modificado. O cineasta norte-americano Ben Russel tem consciência disso, e, portanto, entende-se sua intenção de não interferir naqueles ambientes em que se insere, seja nas profundezas de uma mina na Sérvia ou na lama de um garimpo no Suriname. Dois ambientes que se revelam sob novos olhares em Boa Sorte, um filme que cobra mais do que está disposto a entregar – tal qual os seus campos de estudo. E este paralelismo, que muitas vezes cumpre uma função, aqui termina por jogar mais contra do que a favor.
Os homens se preparam para mais um dia de trabalho. A visão do diretor os persegue à distância. Assim, é possível observá-los sem ser parte daquele todo. Eles se encontram, se reúnem e caminham rumo à escuridão. Não há muito a ser dito, pois sabem bem o que os espera. E assim, em passos lentos, seguem em diante. Se para eles aquele deve ser apenas mais um dia, igual a tantos outros, para nós, que os acompanhamos pela primeira vez, as exigências se tornam maiores. É preciso se acostumar com as condições que, gradualmente, vão sendo impostas. O absoluto nada do fim do túnel, a iluminação escassa providenciada pelas lanternas em seus capacetes, o elevador que percorre por longos minutos em silêncio rumo ao centro da Terra. Uma vez no seu destino, pegam suas ferramentas e partem para suas funções. Juntos, mas cada um como se fosse o último dos seus, tendo abandonado a vida em troca de uma provação que nem todo homem está disposto a enfrentar.
“Do que você tem medo?”, Russell pergunta, na sua primeira intromissão, quase uma hora adentro do filme. Estamos em uma pausa, momento de descanso, de recuperar as energias e confraternizarem uns com os outros. Um a um é questionado, e as respostas vão surgindo, tímidas, entre risos abafados e constrangimentos coletivos. Da esposa, dos políticos, de não ter dinheiro suficiente para chegar até o final do mês. Estas são as declarações mais comuns. Demora, no entanto, para que a verdade chegue. E esta, curiosamente, nunca vem por completo. Nenhum deles chega a afirmar: “tenho medo de morrer”, “de que tudo isso desabe sobre nossas cabeças”, “de nunca mais ver minha família”. Exatamente o que já aconteceu com tantos outros operários em situações similares ao redor do mundo. Mesmo assim, ali estão. Acreditando que na próxima rocha, na escavação seguinte, seus futuros possam mudar para sempre. Essa esperança vazia, que insiste em não morrer, permanece nos seus olhares. Nos rostos que olham diretamente para o espectador. São tão distintos assim, ou somos muito mais parecidos do que imaginamos? O que acontecerá com cada um deles? Talvez não seja apenas uma questão de sorte, afinal.
Algo similar se passa nas selvas amazônicas do Suriname. O rapaz caminha sem pressa rumo ao garimpo. O trajeto é longo, mas ele sabe o que o espera – e tem a tranquilidade do conhecimento de que, se for para ser, será. Não é preciso apressar as coisas. Uma vez lá, é preciso colocar as máquinas para funcionar, drenar os córregos, movimentar equipes – tudo em busca de uma fortuna que pode lhe surgir a qualquer instante. Ou nunca. Eles sabem que estão ali fazendo apostas. Uns mudarão suas vidas para sempre, outros seguirão miseráveis até o fim. “Há algum milionário entre vocês?”, o diretor pergunta. “Não”, é o que houve como retorno, de forma unânime. Mesmo assim, seguem ali, acreditando. Quem sabe um deles não seja o primeiro?
Mais do que um filme, Boa Sorte é quase um experimento. Um exercício. E, como tal, exige muito dos seus praticantes, independente do lado da tela em que estes se encontrem. O ritmo lento, quase parado, poderá abater muitos pelo caminho – é certo que nem todos chegarão até ao seu desfecho, momento este que nem sequer chega. Afinal, a partida é movida mais pelo abandono do que pela conclusão. No frio do Leste Europeu ou no calor da América equatorial, cada indivíduo se move atrás dos mesmos sonhos, desejos, ambições. Não há diferenças. E se o discurso é esse, não há espaço que justifique tanto esforço. Ao apostar em uma forma hermética, que mais afasta do que aproxima, Russell esgota o valor de sua narrativa, investindo em um debate que se demonstra fraco, justamente pela ausência de locutores, esgotados pela jornada que poucas surpresas apresenta, apenas revelando verdades já conhecidas. Há algo muito bom nisso tudo. A se lamentar, apenas, o esforço do realizador em esconder estas conquistas.
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