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Crítica


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Sinopse

Bob Marley, já consagrado como um dos grandes nomes da cena artística da Jamaica, se depara com um cenário politicamente instável que pode descambar para uma guerra civil. Seguindo seus ideais de espiritualidade e resistência, ele continua sendo um mensageiro da paz.

Crítica

Bob Marley: One Love, a aguardada cinebiografia do músico jamaicano Bob Marley, apresenta alguns problemas comuns nesse tipo de filme sobre personalidades que marcaram épocas. O primeiro deles é a pressa para contar as histórias que deveriam se entrelaçar em função de um panorama consistente sobre o personagem, mas que acabam sendo abordadas de modo muito fragmentado, vago e sem um real senso de unidade. Tudo começa com o protagonista inserido no contexto das turbulências políticas e civis da Jamaica nos anos 1970, vivendo num país em que a polarização pode descambar a qualquer momento para uma guerra civil. Pelo menos o roteiro assinado por Terence Winter, Frank E. Flowers, Zach Baylin e Reinaldo Marcus Green não envereda pelo testemunho da trajetória de Bob Marley desde a infância, a isso optando por um recorte da vida adulta dessa figura pública que se tornou célebre. No entanto, é bom não comemorar antes do tempo a fuga desse clichê de abordagem das cinebiografias. Sempre que possível a trama volta no tempo em flashbacks que resumem de modo superficial a meninice sofrida, marcada pelo abandono, e os primeiros passos da relação de Bob com sua esposa e parceira profissional. Então, do ponto de vista prático, o passado é sempre convocado quando o cineasta Reinaldo Marcus Green “mastiga” informações para o espectador não se sentir perdido. Sendo que os cenários apresentados à plateia são geralmente supérfluos e não acrescem tanto.

O escolhido para viver o astro jamaicano nas telonas foi Kingsley Ben-Adir, ator que dá conta do recado, ainda que se possa fazer objeção à tentativa do intérprete (e da direção, claro) de idealizar Bob Marley quase como um enviado místico encarregado de pacificar o mundo por meio de suas letras ora contestadoras, ora românticas como raras do seu tempo. E isso não tem nada a ver como o personagem vivencia a religiosidade (aliás, um dos traços mais bonitos de seu compromisso com o mundo), mas com seu retrato geral enquanto um gênio instintivo diretamente conectado com algo superior que o guia. Seja diante da guitarra de um desconhecido ou mesmo da inspiração do colega para a capa do novo álbum, Bob Marley está sempre em busca das dicas da sua intuição, poucas vezes fazendo uma leitura prática ou direta das coisas. Mas, voltando ao cenário no qual a trama se passa, ele diz respeito a um momento tenso da história jamaicana do qual Bob Marley e as pessoas próximas se tornam vítimas. Depois de dar de ombros aos avisos dos amigos sobre os perigos, o protagonista é atingido por um tiro, vê a esposa ficar entre a vida e a morte depois de ser alvejada na cabeça e o amigo levar seis balaços ao lado. Reinaldo Marcus Green tinha a faca o queijo na mão para estudar o personagem em perspectiva com as turbulências desse país do qual ele se tornou uma espécie de embaixador global. No entanto, Green prefere empilhar várias situações superficiais sem dar tempo a elas.

Quando Bob Marley precisa sair da Jamaica, a direção não se interessa pelo desenraizamento forçado que certamente mexeu com ele. Do mesmo modo, ao mostrar que o artista precisa se separar dos filhos e da esposa momentaneamente, não há a sinais de o quanto isso foi difícil – ainda mais levando em consideração o discurso do artista em prol da família. Ao Bob confrontar um companheiro que o está passando para trás, toda a situação vira uma catarse localizada e sem consequências. Desse modo, os gestos são estritamente o que representam naquele momento, ecoando pouco à frente e uns nos outros. Nada em Bob Marley: One Love persiste tempo suficiente para ser imprescindível, pois o roteiro parece numa maratona para inserir personagens e situações encarregados de gerar a ideia de amplitude. Então, do que adianta fugir ao lugar-comum das cinebiografias que partem da infância e vão progredindo de modo cronologicamente retilíneo, se mesmo assim os criadores optam por saturar o filme com elementos que eles não têm tempo para elaborar dramaticamente? Nem bem digerimos que Rita Marley (Lashana Lynch) está entre a vida e a morte, ela aparece quase milagrosamente para cantar. O próprio Bob Marley simplesmente continua em frente mesmo depois de ter sido alvejado (parece que a bala some providencialmente). Além disso, os coadjuvantes são quase completamente destituídos de subjetividade, existindo estritamente em função do protagonista.

A presença de Rita Marley é um dos indícios da reprodução de velhos vícios cinebiográficos em Bob Marley: One Love. Ela é restrita a ser a esposa resiliente que dá suporte à genialidade do marido, reivindicando somente numa cena o status de indivíduo com anseios e desejos próprios. Aliás, nesse momento há a única concessão à visão romântica proposta por Reinaldo Marcus Green, justamente quando Rita desabafa sobre os casos extraconjugais de Bob Marley e fala do fardo de criar os filhos que ele teve com outras mulheres. Mas, tudo é devidamente controlado para evitar qualquer mácula significativa à imagem respeitável em construção. Dito assim, pode parecer que o crítico estava esperando uma versão negativa de Bob Marley, mas não se trata disso. É possível prestar homenagens a alguém preservando a sua humanidade, ou seja, utilizando defeitos e qualidades para desenhar um retrato complexo. Mas, o realizador tem tendências românticas e as coloca à disposição de uma hagiografia (como eram chamadas as biografias dos santos). Por fim, a utilização das músicas de Bob Marley obedece a um critério adotado como princípio narrativo: inserir o maior número possível de itens e torcer para eles funcionarem em conjunto. Muitas transições são preenchidas com hits, especialmente aqueles que não cabem nas apresentações embaladas por sucessos. Assim a música vira fanservice (dar aquilo que o fã quer), menos um meio de transmitir mensagens e gerar encantamento estético.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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