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Sinopse

Boca de Ouro é um criminoso que, abandonado pela mãe, ao crescer manda arrancar os próprios dentes e colocar no lugar outros feitos de ouro. Designado para descobrir a verdadeira história do marginal, um repórter decide entrevistar uma ex-amante do bandido.

Crítica

Ao contrário da acidez que Nelson Pereira dos Santos resgatou no Boca de Ouro de 1963 ou na decadência planejada por Bruno Barreto no Boca de Ouro de 1990, o que Daniel Filho consegue com o seu Boca de Ouro é apenas um pastiche de melhores intenções, perdidas diante de um suposto modernismo que, na ânsia por se mostrar relevante, tudo o que consegue é evidenciar fraquezas e debilidades. Ao invés de pegar o texto de Nelson Rodrigues e adaptá-lo para um mundo cada vez mais afeito às transformações imediatas, no qual o desatento tem tudo para ser deixado para trás – quando não atropelado – o cineasta consegue apenas mostrar-se envelhecido, sem atender às demandas de um olhar contemporâneo e muito menos atender a um viés mais clássico. Seus esforços se revelam não apenas vazios, mas também desconexos, perdidos entre uma postura ultrapassada e uma vontade que há muito deixou de imprimir qualquer tipo de significado.

O início, no entanto, é auspicioso. Uma cuidadosa fotografia em preto e branco serve para ilustrar uma noite chuvosa, na qual o personagem de Silvio Guindane, o repórter Caveirinha, aos poucos vai demonstrando desenvoltura para se livrar de curiosos, policiais e investigadores para, enfim, chegar até a cena no crime, no segundo andar de uma mansão por muitos cobiçada: é a casa do Boca de Ouro (Marcos Palmeira), e ele está morto. Quem foi o responsável pelo assassinato? Homem ou mulher? A possibilidade de um crime passional é alta. Mas o tom sóbrio perseguido até esse momento logo se esvanece: ao se aproximar do corpo, o jornalista tropeça nos próprios pés e cai, desajeitadamente, sobre os lençóis ensanguentados. O tom é cômico, apesar da violência enquadrada. Essa irregularidade, portanto, irá ditar o ritmo dos acontecimentos a partir de então.

A motivação, como se poderia imaginar, é descobrir quem teria dado fim a um homem que muito medo impôs à sociedade carioca, mais de meio século atrás. Esse pode ser o argumento, que, no entanto, logo é deixado de lado. Com a ideia de recorrer à mais famosa das amantes do contraventor, Caveirinha vai até Guigui (Malu Mader), que não mede palavras para falar do ex. Quando descobre que está se referindo a um falecido, porém, decide refazer seus relatos, transformando o monstro cruel em uma vítima das circunstâncias. Por fim, quando o marido atual (Guilherme Fontes) enfim se manifesta, ela mais uma vez reconta a mesma história, agora em tom conciliatório, preocupada mais em salvar o casamento do que com a veracidade das suas lembranças. Tinha tudo para ser Rashomon (1950), mas o que consegue é flertar com um esquete de um cansado humorístico televisivo.

As mudanças de perspectivas deveriam servir para criar um personagem múltiplo, um bandido apaixonante, um cafajeste de primeira linha. Palmeira deixa claro não estar preocupado com essas possíveis leituras, e cada encarnação surge tão próxima da anterior que serve apenas para colocar em evidência a incapacidade do intérprete em propor um mergulho mais detalhado. As atenções, curiosamente, tanto nos depoimentos daquela que foi sua companheira como nas encenações dramáticas, se voltam para um casal específico, afetado pelas ligações com o protagonista: Celeste (Lorena Comparato) e Leleco (Thiago Rodrigues), ela transitando entre a casta e a vagabunda, ele indo do marido vingativo ao corno manso. Cada interação deles com Boca de Ouro tem um motivo – despeito, orgulho, carência, honra, esperança. Todas encontram o mesmo fim, mais gráfico do que piedoso. As variáveis se perdem, pois desprovidas de significados, terminam por se apresentar redundantes e tediosas.

Mais do que o desperdício de uma boa história, Daniel Filho naufraga também ao se apropriar de um texto que há muito adquiriu outros sentidos, mas com o qual insiste em trabalhar como se na época em que a trama se passa estivesse a produção. Ao explorar um olhar machista, insistindo na exposição dos corpos femininos em sequências desnecessárias, reduzindo-as a não mais do que objetos de disputa e cobiça, o desprezo desta figura que sonhava com uma boca dourada e um caixão de puro ouro termina por impregnar também a narrativa, que faz pouco caso de suas motivações, origens e feitos para se perder em perucas mal colocadas, reações exageradas e discursos verborrágicos, deixando passar a verdadeira oportunidade de não apenas discutir tais propostas, mas também sugerir novos olhares a respeito de algo já muito visto. Com isso, resta ao espectador apenas uma intermitente sensação de enfado, seja pela repetição desprovida de criatividade ou pelo desperdício de uma visita que, ao invés de questionar, funciona apenas para validar práticas cujos espaços precisam ser revistos com urgência.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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