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Crítica

Uma das obras menos exaltadas de Elia Kazan é também a única deste cineasta greco-americano que assume a comédia como gênero principal, ainda que o faça a partir de aspectos um tanto quanto controversos e inesperados. Baseado em duas peças escritas por Tennessee Williams e roteirizado pelo próprio, Boneca de Carne talvez seja o trabalho menos ambicioso de Kazan e curiosamente aquele que atingiu um de seus maiores êxitos comerciais.

Filmado integralmente em locações rurais do Mississippi, esta comédia de humor negro apresenta um bizarro e cruel triângulo amoroso, que nasce quando o empresário siciliano Silva Vaccaro (Eli Wallach) decide seduzir a jovem Baby Doll (Carroll Baker), esposa de seu principal rival, Archie Lee (Karl Malden), como vingança por este ter incendiado a sede de sua empresa. Flertes, seduções, ciúmes e jogos perversos são inevitavelmente pontuados na inesperada relação do trio, que se encaminha rapidamente para consequências irreparáveis.

Com Boneca de Carne, assim como fizeram em Uma Rua Chamada Pecado (1951), Kazan e Williams exploraram novos níveis na representação da sexualidade com temas como luxúria, repressão sexual e sedução, enfatizando a perspectiva feminina frente a tais questões – algo que o cineasta reiteraria posteriormente no excepcional Clamor do Sexo (1961). A protagonista, que carrega o título original do filme em seu nome, Baby Doll, apresenta toda a sensualidade animalesca, inocência, vaidade e paixão à flor da pele que se espera de uma jovem em sua condição. Com seus ares de Lolita e beleza pueril, não é de se estranhar a guerra masculina que se trava ao seu redor.

Nos Estados Unidos dos anos 1950, numa sociedade purista e majoritariamente regida por severos códigos morais, tais abordagens não poderiam passar impunes pela Legião Católica da Decência dos EUA, que classificou Boneca de Carne como indecente na infame lista de produções consideradas inadequadas para qualquer espectador. A tradicional revista Time, por sua vez, o apontou como o filme norte-americano mais sujo já exibido legalmente. Como era de se esperar, todo o alarde com a publicidade gratuita que apontava o filme como impróprio por sua “sugestão carnal” e “sexualidade explícita” apenas ampliou seu alcance e sucesso. Deve-se indicar que, no entanto, a produção não apresenta qualquer sequência de sexo, nudez, violência ou profanação.

Em seu segundo papel, primeiro como protagonista, Carroll Baker empresta seu belo fenótipo, curvas e ternura à jovem virginal Baby Doll, papel que seria de Marilyn Monroe por indicação de Williams, mas que Kazan preferiu ceder à Baker após apreciar sua performance em Assim Caminha a Humanidade (1956). Eli Wallach, que também estreia como o siciliano excêntrico e enérgico Silva Vaccaro, parece um pouco deslocado, já que sua figura deveria inspirar medo e desejo ao espectador – e o ator parece eficaz apenas na primeira tarefa. Karl Malden no papel de Archie Lee e Mildred Dunnock como a tia alienada de Baby Doll estão igualmente excelentes, e o diálogo em que dividem quando ele a expulsa de sua casa é um dos grandes momentos do filme.

Indicado para os Oscars de Melhor Atriz, Atriz Coadjuvante, Roteiro e Fotografia – magistral registro de Boris Kaufman – Boneca de Carne rendeu a Elia Kazan o Globo de Ouro como Melhor Diretor. Repleto de qualidades que ainda fascinam audiências, esta comédia dramática parece não ter envelhecido mesmo passados quase 60 anos desde sua produção. Mérito principal de Tennessee Williams e Elia Kazan, respectivamente dois dos maiores dramaturgos e cineastas norte-americanos de todos os tempos. Munidos dos méritos que fizeram de Uma Rua Chamada Pecado uma grande obra, a dupla os replica com a adição de elementos tragicômicos e farsescos, retratados a partir de uma seriedade que torna a produção ainda mais irresistível.

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