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Sinopse

O repórter estrangeiro predileto de nove entre 10 norte-americanos está de volta com o intuito de salvar o mundo da pandemia. Além do desafio, ele terá de lidar com as peculiaridades da filha adulta.

Crítica

Trazer de volta Borat para escrachar aspectos da nossa contemporaneidade, que às vezes parece um acúmulo de brincadeiras de mau gosto, é uma grande sacada de Sacha Baron Cohen. O repórter do Cazaquistão que em Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (2006) revelava traços formativos da sociedade norte-americana, preconceituosa e tacanha, regressa, novamente não deixando pedra sobre pedra. Antes, ele era um ilustre desconhecido, mas após quase 15 anos se tornou figurinha tão carimbada que não consegue passar despercebido nas ruas e, vejam só, virou motivo de fantasia com anúncio discriminatório. O cineasta Jason Woliner e o time numeroso de roteiristas utilizam isso como insumo para que o protagonista precise, por exemplo, se camuflar de estadunidense, assim recorrendo a arquétipos corroborados pela realidade. Porém, o tema agregador, o fio condutor de Borat: Fita de Cinema Seguinte, é a emancipação feminina. Tutar (Maria Bakalova), única filha mulher de Borat, vira peça de um plano machista.

O cazaque Borat é um espelho, com seu bigode indefectível e a falta de filtros que lhe permite externar podres enraizados. Sua missão agora é estabelecer uma ponte amigável entre sua nação subdesenvolvida e o presidente dos Estados Unidos, por ele chamado de McDonald's Trump. Borat fala que o mandatário é parte de um time de “grandes líderes” (ironia detectada), dentre os quais cita (e mostra) Jair Bolsonaro. O Brasil, portanto, definitivamente entrou na rota da chacota mundial. Voltando a Borat: Fita de Cinema Seguinte, há um preâmbulo caracterizado pela exacerbação da misoginia, ao ponto de serem normalizadas coisas como mulheres vivendo em gaiolas. Tutar tem como modelo de vida a “princesa” Melania – com direito a um hilário e ferino desenho animado que mostra a primeira-dama dos Estados Unidos sendo literalmente agarrada pelas partes íntimas pelo príncipe bufão Donald. Sacha Baron Cohen ofende para chacoalhar as estruturas, faz graça com noções atrozes, assim deflagrando as parcelas obscurecidas daquilo que nos torna coletivamente nocivos.

Maria Bakalova é o grande destaque de Borat: Fita de Cinema Seguinte. Depois de comer o macaco que seria oferecido em sinal de amizade, Tutar se coloca em várias situações que evidenciam as conivências com o machismo. Alternando a construção puramente ficcional e as interações com homens e mulheres desavisados (?), Jason Woliner vai costurando uma trama capaz de virar várias chaves para ridicularizar essa América puritana, afeita a armas, ao negacionismo e que ultimamente tem exportado artigos de destruição em massa, tais como as famigeradas fake news. A filha de Borat aprende como ser feminina com uma sugar baby que propaga lições de submissão; o repórter conversa com uma preparadora de debutantes para compreender o esperado de uma menina de 15 anos; e ambos têm um diálogo potencialmente assustador com um cirurgião plástico. Aliás, o sujeito chega a dizer que transaria com menor ali, desde que seu pai não estivesse por perto. E há instantes de constrangimentos igualmente reveladores, como o baile em que a menstruação choca a todos.

Há um discurso consistente nessa comédia ora escatológica, ora deliciosamente non sense. Borat: Fita de Cinema Seguinte alterna momentos espetaculares, tais como a invasão do comício do vice-presidente republicano Michael Pence, e pequenos movimentos equivalentes em força, vide a fala do pastor contrário ao aborto diante de uma confusão de comunicação que o faz acreditar num abuso parental. Tutar é tratada como sub-humana na frente das pessoas e elas, quando muito, esboçam leves desconfortos, às vezes corroborando absurdos. Sintomaticamente, é uma mulher negra, contratada como babá, quem quebra o ciclo vicioso de consentimentos verbalizados ou decorrentes da omissão. Seu discurso motiva a menina supostamente em vias de fazer uma cirurgia para ser oferecida pelo pai em troca de simpatia política. Sacha Baron Cohen atira em muitas direções, mas de modo ordenado e encorpado, com focos específicos e habilmente destrinchados.

Em meio a essa vontade de escancarar a natureza sombria da América conservadora, Borat: Fita de Cinema Seguinte aborda a crise global provocada pela pandemia do Covid-19. Para isso, Borat dá um jeito de fazer quarentena com dois republicanos raivosos, a quintessência dos eleitores que deram à extrema-direita poderes para fazer o mundo retroceder. Os homens destilam seu ódio contra o ex-presidente Barack Obama e passam adiante com naturalidade a disparatada informação de que Hillary Clinton se alimenta de sangue infantil – equivalente à patacoada em torno da mamadeira de piroca no Brasil. E, em meio a esse processo de expor as veias nocivas de uma sociedade que vende a falsa noção de apreço pela liberdade, o filme tem um instante de empatia excepcional, protagonizado por uma senhora judia que, ao invés de tratar seu opositor com chutes e pontapés, acolhe sua ignorância e hostilidade com compaixão e carinho. E Tutar, em seu significativo caminho rumo independência, ainda consegue criar uma situação com o ex-prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani, que diz muito sobre o machismo encarado no filme com o escárnio merecido. Ademais, a piada que relaciona os Republicamos à Ku Klux Klan, um dos odiosos símbolos do segregacionismo dos EUA, já valeria o filme.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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