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Sinopse

O detetive Kari tem um enigma nas mãos depois de sair de uma instituição psiquiátrica. O caso mais difícil de sua carreira apresenta uma enquete mortal nas redes sociais, um mural de sangue e um assassino em série.

Crítica

Escrever sobre um filme que continua uma série de TV é particularmente desafiador quando não se assistiu previamente à série de TV. E Bordertown: A Eliminação dá sequência às três temporadas de Bordertown (2016-2020). Ele tem os mesmos personagens e se desenrola a partir de vínculos antes estabelecidos. Então, a audiência "no escuro" deve ser como assistir à Cobra Kai (2018-) sem ter conferido, ao menos, os principais exemplares da saga Karatê Kid. Dá para usufruir, mas certos gatilhos somente funcionarão com os previamente iniciados. Posto isto, de que este texto foi escrito por alguém que não viu a série, uma das abordagens críticas possíveis é tentar mensurar as estratégias (ou a ausência delas) do cineasta Juuso Syrjä para convidar os desavisados a participar desse jogo criminal de gato e rato. E o primeiro diagnóstico é que o realizador não parece muito disposto a acolher os "ignorantes". A trama começa com a demonstração de sadismo de um assassino incógnito que literalmente sangra um cadáver de cabeça para baixo e depois grafita sua mensagem provocativa na parede com o sangue extraído da vítima. Não demora para a polícia se deparar com um enigma que pede as atenções do detetive Kari Sorjonen (Ville Virtanen). O problema é que esse “Papai Noel da criminalística”, conforme um colega se refere a ele, está internado numa instituição psiquiátrica para cuidar de sua saúde mental em frangalhos. Como dispor da mente prejudicada para esse trabalho?

Bordertown: A Eliminação não perde tempo diante desse obstáculo inicialmente fundamental, logo o tirando do caminho sem tanta cerimônia. O filme realmente não demora muito para apresentar o homem se realinhando pela simples motivação de voltar à ativa – com direito à cena se barbeando, cortando o cabelo, ou seja, voltando a ter uma “aparência respeitável”, seja isso o que for. A rapidez dessa troca de estatuto (de homem fragilizado a líder da investigação) já é um indício de que os roteiristas não estão tão preocupados com a consistência das oscilações emocionais/psíquicas dos personagens principais. Essa predisposição pelo superficial se revela um dos grandes problemas do longa-metragem, algo que o coloca numa rotação quase oposta a de outras realizações que também mostram as buscas por um misterioso assassino em série. Por exemplo, em Zodíaco (2007) a própria caçada era o ponto vital do enredo sobre a capacidade destrutiva das obsessões. E para isso o cineasta David Fincher investia na profundidade dos inúmeros aspectos humanos implicados nesse quebra-cabeça. Já Juuso Syrjä prefere passar por cima dos elementos que tenham potencial para desviar a atenção do mistério: quem será a pessoa que está reproduzindo o estilo e os ensinamentos do maior criminoso dos redondezas? Pela forma como Lasse Maassalo (Sampo Sarkola) é situado, provavelmente deva ter sido o grande vilão da série. Agora, os protagonistas precisam encontrar o reprodutor de seus padrões.

Outro ponto que enfraquece a experiência é o desenvolvimento morno. O roteiro parece indeciso: não sabe se nos instiga com as poucas pistas supostamente reveladoras, os caminhos falsos e tudo mais o que diz respeito a esse tipo de história, ou se ressalta o trajeto particular do protagonista, especialmente o acelerado processo de retomada das rédeas da sua vida. Por meio da fotografia que privilegia tons frios (sobretudo o azul escuro), Juuso Syrjä quer consolidar visualmente em Bordertown: A Eliminação a atmosfera opressora. Mas ela não encontra equivalência dramática nos labirintos da investigação e tampouco na jornada dos personagens. Logo, Kari entende que sua excepcional capacidade dedutiva não será suficiente para decifrar o enigma e, então, vai buscar a ajuda de seu nêmeses. A interação do protagonista com Lasse é semelhante a da policial e do canibal em O Silêncio dos Inocentes (1991). Sim, de uma forma bastante parecida a que vemos no filme norte-americano vencedor do Oscar, nesse drama finlandês o homem da lei precisa da mente perversa para tentar capturar o vilão que vem causando furor na sua comunidade – embora em nenhum momento o foco seja aberto para entendermos essa tensão social decorrente das matanças. Porém, nesta produção de poucos tons tudo fica restrito à troca de ameaças veladas, sem ao menos os aprofundamentos nessa conexão inesperada.

Evidentemente que Bordertown: A Eliminação tem deixas, acenos e piscadas melhor absorvidas por quem assistiu à série. Em vários instantes, a entrada “triunfal” de alguém, a menção a uma repetição de padrão e certos expedientes do passado surgem sem muita contextualização. Claro, os roteiristas criaram uma história tendo em vista que a maior parte dos espectadores é feita de pessoas iniciadas nesse universo que, a julgar pelo filme, carrega muitos componentes genéricos. Aos não iniciados (como o autor deste texto, é bom frisar novamente), as coisas podem ficar bem superficiais e vagas demais, pois o lastro visto na série é insuficientemente retomado no filme. No entanto, para além dessa notável diferença de perspectiva entre os familiarizados e os não familiarizados com esse mundo, o longa-metragem tem dificuldades consideráveis: 1) para eletrizar as dúvidas; 2) para estabelecer as tensões entre as pessoas; 3) para fortalecer o jogo de proximidade/distanciamento entre mocinhos e bandidos (e os limites dessas fronteiras poderiam ser bem mais bagunçados). O elo entre os defensores da lei e os que acreditam no poder da transgressão como forma de expressão sublime não evolui como poderia. Kari é o tipo de investigador que toma emprestado de figuras clássicas de literatura e do cinema, tais como Sherlock Holmes, a capacidade absurda de dedução. Sem tanta ênfase à luta pessoal contra as limitações de sua saúde mental, o filme se contenta de mostra-lo novamente na ativa depois de meia dúzia se rituais, apertando a têmpora sempre que é necessário encontrar respostas. Kari tem epifanias convenientes que não são entendidas como meras deduções, mas como lampejos de sabedoria.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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