Crítica


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Sinopse

Bosco é uma minúscula cidade italiana, cercada por montanhas e castanheiros. De suas 123 casas, apenas sete são habitadas. A diretora se vira então ao Uruguai, onde vive seu avô, emigrante de Bosco. Ao longo de 13 anos, ela acompanha tanto este homem quanto os habitantes que permanecem no vilarejo até hoje. No processo, retrata as transformações de uma geração.

Crítica

Em um determinado momento, a diretora pergunta a duas senhoras: “o que significa ‘casa’ para vocês?”. Elas se entreolham, como se algo tão básico não necessitasse explicações. “É uma edificação”, diz uma delas. “É onde moramos”, responde a outra. Estão nervosas, não sabem bem o que dizer, o que delas se espera. É algo que nunca pensaram a respeito, até porque não lhes foi preciso. Até aquele ponto de suas vidas, ninguém havia surgido com a proposta de lhes fazer refletir a partir de algo que sempre lhes foi tão parte delas, como um braço ou a unha do pé. Pois a partir da questão proposta, aos poucos vão desconstruindo essas ideias pré-formatadas, como se fosse o que o mundo delas exige, para começar a formular suas próprias versões. Essa busca pelo lar, e o que dele se pode esperar, está no coração de Bosco, longa documental que nasce no Uruguai, mas que acaba se encontrando no outro lado do Atlântico. E nesse processo, por mais circular que seja o discurso que estabelece, há tanta emoção envolvida que na maior parte do tempo se torna fácil ao espectador relevar desencontros em busca de um sentimento que muito se almeja, mas pouco se percebe fora do cenário aqui idealizado.

Ainda que este não seja o filme de estreia de Alicia Cano, segundo ela é também o seu projeto mais antigo. Ou seja, outros até surgiram pelo caminho, como são, de fato, as coisas da vida, mas é nesse no qual se debruçou há mais tempo e, como numa obra de artesania, o que mais contou com sua dedicação. O resultado, tanto pelo bem, como pelo mal, denota esse investimento. Afinal, quando se aproxima demais do seu objeto de paixão, ao mesmo tempo se torna quase impossível dissociar o que é válido ou não, o que merece continuar recebendo atenção e aquilo que pode ser deixado de lado sem demérito ao resultado. Sem o devido distanciamento, portanto, há tantos excessos que poderiam ter sido facilmente descartáveis, como acertos que somente os conhecedores do tema poderiam tê-los descobertos, e neles trabalhado até um ajuste preciso e condizente com o conjunto.

Bosco, nome com o qual Cano decidiu batizar seu longa, é também como se chama o pequeno vilarejo de onde seu avô, Orlando, emigrou há mais de um século, deixando a Itália da família Menoni para o Salto de um Uruguai ainda em formação. Ao fazer o trajeto contrário, a realizadora não apenas decide investigar as lembranças e memórias daquele homem que desde a infância lhe acompanha, mas também recriar histórias e vivências que apenas o tempo é capaz de proporcionar. Não que sejam frutos de uma jornada particular – muitas delas, aliás, até se duvida que possam ser verídicas. Mas são resultado de uma experiência que tanto o factual quanto o sonhado podem apontar, combinações do que permaneceu com eles ao longo dos anos, mas também de anseios e esperanças pelas quais muito se lutou, ainda que nem todas tenham chegado a se concretizar.

A cineasta está decidida a não fazer do seu filme um objeto de estudo, e, sim, dotá-lo de uma carga emocional mais apropriada aos relatos íntimos e sensoriais. Assim, dedica-se tanto às entrevistas e relatos, como às observações, devaneios e impressões, que nem sempre alcançam o melhor registro frente às câmeras. Tais esforços, difusos em suas intenções, derivam em percursos que muito exigem de sua audiência, sem, no entanto, disposição suficiente para entregar algo à altura do investido. É certo que para a realizadora o quebra-cabeça que se forma deve ter feito sentido. Mas um filme é feito tanto para si como também para os demais que irão assisti-lo e que, a partir dele, construirão suas próprias narrativas, tendo como partida o mesmo material. O fato é que, em sua maioria, o imaginado – e supostamente atingido – pela condutora nem sempre estará em sintonia com o refletido pelos demais.

Assim como em Os Dias com Ele (2012), de Maria Clara Escobar, Bosco também parte do princípio que, ao olhar para o passado, será possível desenhar um futuro mais acolhedor, se não para os outros, ao menos para si. Porém, a objetividade e definição do que se procura percebidos no longa brasileiro desaparecem no relato uruguaio, indeciso entre um mergulho pessoal e as aspirações artísticas que terminam vazias pela âncora particular que carregam consigo, tanto limitadoras quanto fonte de diferentes interpretações. É da própria história que retira os elementos para sua obra. Mas é preciso também saber quando se desligar e como estabelecer pontes para outros caminhos e possibilidades. Alicia Cano tem os elementos a sua disposição, mas lhe falta desprendimento para ir além do que está ao seu alcance e fazer o esforço necessário para atingir o não planejado. Um impulso que faria a diferença.

Filme visto de modo presencial durante o 31º Cine Ceará, em Fortaleza, em novembro de 2021

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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