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Sinopse

Filho de um humilde pescador, Adam recebe o privilégio de estudar na Universidade Al-Azhar do Cairo, no Egito. Pouco depois de sua chegada à cidade, um importante líder religioso morre e ele se vê no meio de um jogo brutal.

Crítica

A história de alguém que “se queima” ao tentar escapar de um destino considerado medíocre não é nova no cinema. Mas, em Garoto dos Céus a premissa está inserida num contexto cheio de particularidades. Tanto que, para desenvolver o mote conhecido, o cineasta Tarik Saleh utiliza elementos também familiares do suspense a fim de facilitar a condução do espectador ao principal: a revelação do forte componente político da religião. O protagonista é o jovem Adam (Tawfeek Barhom), “condenado” a continuar a atividade de pesca do pai (assim como os seus dois irmãos menores), mas “salvo” pela bolsa de estudos que lhe concede a entrada numa instituição respeitada do Egito. Adam é admitido numa das mais concorridas universidades do Cairo, a Al-Azhar, epicentro do poder do islamismo sunita. Sua admissão é um feito respeitável ao ponto de inviabilizar a restrição do pai que castiga fisicamente para fazer valer sua autoridade. Chegando à capital movimentada, Adam é “escolhido” para fazer parte da conspiração que visa garantir ao Estado o comando da entidade. O governo do Egito se movimenta agressivamente para que o novo Imã – a maior autoridade religiosa do país – esteja alinhado às suas demandas. E o que temos dali em diante é a construção de uma tapeçaria de manipulações, chantagens e outros comportamentos que nada têm de santificados ou corretos.

Tarik Saleh afirmou em entrevistas que a inspiração para Garoto dos Céus surgiu depois da releitura de O Nome da Rosa, livro de Umberto Eco. Ele queria fazer algo parecido, mas num contexto muçulmano. E o resultado é um filme que alterna instantes de simples repetições de procedimentos comuns ao suspense e algumas sutilezas encarregadas de levar a trama a patamares interessantes. Adam é sugado para o centro de um redemoinho político do qual se torna um dos atores principais. De testemunha de um assassinato ele passa a informante do governo e, mais à frente, tem atuação fundamental para a vitória de um dos lados na escolha da autoridade religiosa que ajudará a conduzir os rumos da nação. Às vezes ele parece uma vítima frágil arrastada por um sistema que desconhecida quase completamente até ali. Noutras, se apresenta como alguém que está entendendo as benesses de estar ao lado de quem realmente manda. E essa oscilação faz parte da tentativa de mostrar que esse homem possui camadas, não sendo limitado a isso ou àquilo. Forçado pela chantagem estatal a tomar atitudes moralmente reprováveis, Adam age adiante como se a culpa de seus atos não pesasse sobre os ombros. Uma vez que o personagem é basicamente um deflagrador, sua jornada pessoal vale o quanto pesa a reprodução do arquétipo “inocente corrompido” ao abandonar a mediocridade.

O que Garoto dos Céus tem de melhor é a capacidade de mostrar as rachaduras na inocência de um protagonista que realmente acreditava na natureza incorruptível da instituição religiosa. Tarik Saleh faz questão de desmontar o discurso pseudo-puro dos homens de fé ao confrontar Adam com verdades inconvenientes, tais como negociatas, trocas de favores, mentiras e dissimulações. Há a constatação de que o poder atribuído pelos homens aos deuses serve, basicamente, aos poderosos se colocarem acima dos demais como mensageiros privilegiados. No entanto, o realizador não faz uma crítica contundente à religiosidade, se direcionando nesse sentido às organizações que concentram a força emanante da fidelidade do povo à religião. Para efeitos de comparação, é como se acompanhássemos as tratativas e estratégias de bastidores de um conclave, ou seja, da ocasião em que um novo papa é escolhido para comandar a igreja católica. Certamente, assim como na indicação de um novo Imã muçulmano, as engrenagens se movimentando estão longe de se restringir à fé. Vemos um agressivo jogo político, afinal de contas as religiões adquirem status praticamente de Estado dentro do Estado. Dito tudo isso, é uma pena que o filme reutilize de modo pouco inspirado certos modelos do cinema ocidental para simplificar batalhas sorrateiras e deixa-las palatáveis. Sobretudo os do cinema adolescente.

Garoto dos Céus tem situações e personagens reconhecíveis por conta de sua exploração em obras populares de teor menos solene e político. Por exemplo, às vezes a vivência universitária parece a dos filmes norte-americanos sobre estudantes. Quando Adam precisa se infiltrar numa turminha da pesada, ele chega ao refeitório e percebe uma estratificação como aquelas que colocam esportistas, líderes de torcida, nerds e outras tribos separadas nas tramas escolares dos Estados Unidos. A intimidação de um colega que suspeita de tudo se dá em outra cena característica do cinema high school: os valentões o tiram do dormitório à noite e ditam suas condições a socos e pontapés. A entrada de Adam na dissidência jihadista acontece de modo análogo à admissão dos mocinhos nas fraternidades nocivas e populares dos filmes cujo cenário são os amontoados de adolescentes norte-americanos loucos para sobressair em meio à teia de vaidades e inseguranças. No entanto, Tarik Saleh não desenvolve esse manifestado interesse pelo funcionamento estudantil (sugerido pelas associações citadas), a isso preferindo se deter nas entranhas da alçada superior da instituição. Então, tais vislumbres se tornam citações sem tanta efetividade dramática, a não ser provocar familiaridade. O saldo é positivo pela denúncia dos poderes que sustentam o discurso muçulmano nas mais altas (e hipócritas) esferas diretivas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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