Mason muda muito ao longo de 12 anos, não apenas fisicamente. Ele passa a enxergar os pais, os relacionamentos e as demais pessoas próximas de maneira bem diferente. Além disso, descobre as belezas e as feiuras de crescer.
BOYHOOD PARA TODOS NÓS
Maria das Graças Targino
Distante da condição de crítica cinematográfica, porém cinéfila fervorosa em reconhecimento ao cinema como arte maior, discorremos, sem grandes pretensões técnicas, sobre os sentimentos que nos assolam quando da projeção de Boyhood. Trata-se de drama norte-americano de 2014, rodado durante 12 anos, sem troca de atores, sob direção e roteiro de Richard Linklater, e, por conseguinte, figurando como uma das mais longas produções do cinema mundial. A partir de 2002, o diretor reunia em segredo sua equipe para a filmagem de determinadas cenas sempre em torno do personagem central – o jovem Mason (protagonizado por Ellar Coltrane), movido pela intenção primeira – acompanhar a transição da infância até a adolescência do garoto. Isto justifica o título original e permite esquecer o redundante subtítulo brasileiro “Da infância à juventude”, reforçando que Boyhood consiste em trama mais do que interessante, por sua extrema originalidade, não importam as críticas adversas.
A história dos pais divorciados Olivia e Mason Sr., vividos, respectivamente, por Patricia Arquette e Ethan Hawke e das demais famílias envolvidas é, sem dúvida, a representação da vida de muitos outros joãos, peters, michelles, patricks, etc., espalhados em diferentes nações perdidas nos mais distantes continentes. É a certeza (palavra que pesa, mas, às vezes, se mostra adequada) de que a existência do ser humano se repete aqui e ali. A passagem da infância para a adolescência é permeada por mudanças orgânicas, cognitivas, afetivas, psicológicas e sociais, não importa onde estejam os protagonistas da vida.
Há alterações de humor que isolam o jovem ou o põem no fogo das aventuras, com disposição para vivenciar, com coragem quase infinita o que der e vier. Há sentimentos superdimensionados de desamor, com frequência, no ambiente familiar ou escolar, com a valorização exacerbada de eventuais brincadeiras ou jogos dos colegas, hoje, apelidados invariavelmente de bullying. Há, ainda, a vivência de grandes paixões e do primeiro amor, ainda sem a crença de que quem aprende a amar, aprende a sorrir e a chorar, também – faces de uma mesma moeda. Há sede quase insaciável de descobrir o mundo e desvendar novos conhecimentos. Há susto diante da imagem refletida no espelho. Há quase irreconhecimento frente a um rosto que lhe parece infinitamente feio, com espinhas enormes, acompanhadas por cabelos ressecados e tudo num corpo desengonçado. O que se aproxima da realidade? As fotos de criança espalhadas pela casa ou a figura “horrorosa” que o espelho projeta em meio a um sorriso maroto?
São muitas as transmutações entre infância e adolescência sintetizadas nos 166 minutos de projeção de Boyhood, produção conjunta de Cathleen Sutherland, John Sloss, Jonathan Sehring e Richard Linklater. Tais mutações se intensificam numa sociedade marcada por reestruturações familiares. Hoje, vivemos com naturalidade em meio a famílias com diferentes contornos: duas mães ou dois pais; adultos que reúnem sob o mesmo teto filhotes de uniões anteriores, em caráter definitivo ou nos célebres fins de semana, onde pais ou mães, sem a convivência cotidiana, tentam, inconscientemente, compensar sua ausência no dia a dia ou, quiçá, o tempo perdido.
E há muito mais: padrastos ou madrastas que se encobrem sob véus de ternura e só, então, após um tempo mais, ou menos longo, despem a máscara do alcoolismo ou das exigências disformes que cheiram a um autoritarismo ímpar, tal como se dá com a postura gradativamente hedionda do segundo e do terceiro marido de Olivia. E é interessante perceber que tal como vivenciamos na rotina diária, cada criança e / ou adolescente reage de forma distinta. A irmã Samantha (Lovelei Linklater) parece imune ao comportamento disforme dos companheiros da mãe e reage com displicência ensaiada à perfeição. Ambos – o “sério” professor universitário e um descolado qualquer são completamente distintos do pai biológico, Mason Sr. Este vive a vida com ânsia de viver cada instante. Ao tempo em que conserva um coração de criança, deixa à mulher todas as responsabilidades da vida adulta.
O sucesso (ainda que discutível para alguns) de Boyhood advém de sua proximidade com o cotidiano do homem contemporâneo: amores e desamores, álcool em profusão ou drogas mais pesadas, famílias que se fragmentam e se recompõem, mulheres que enfrentam com galhardia mil dificuldades e quando se impõem profissionalmente, se autoperguntam: para quê? Afinal, é o momento de os filhos partirem em busca da construção de sua própria vida, independentemente das marcas deixadas por uma infância e adolescência recheadas por muitas alegrias e, nem por isso, por menos dor!
Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica
BOYHOOD PARA TODOS NÓS Maria das Graças Targino Distante da condição de crítica cinematográfica, porém cinéfila fervorosa em reconhecimento ao cinema como arte maior, discorremos, sem grandes pretensões técnicas, sobre os sentimentos que nos assolam quando da projeção de Boyhood. Trata-se de drama norte-americano de 2014, rodado durante 12 anos, sem troca de atores, sob direção e roteiro de Richard Linklater, e, por conseguinte, figurando como uma das mais longas produções do cinema mundial. A partir de 2002, o diretor reunia em segredo sua equipe para a filmagem de determinadas cenas sempre em torno do personagem central – o jovem Mason (protagonizado por Ellar Coltrane), movido pela intenção primeira – acompanhar a transição da infância até a adolescência do garoto. Isto justifica o título original e permite esquecer o redundante subtítulo brasileiro “Da infância à juventude”, reforçando que Boyhood consiste em trama mais do que interessante, por sua extrema originalidade, não importam as críticas adversas. A história dos pais divorciados Olivia e Mason Sr., vividos, respectivamente, por Patricia Arquette e Ethan Hawke e das demais famílias envolvidas é, sem dúvida, a representação da vida de muitos outros joãos, peters, michelles, patricks, etc., espalhados em diferentes nações perdidas nos mais distantes continentes. É a certeza (palavra que pesa, mas, às vezes, se mostra adequada) de que a existência do ser humano se repete aqui e ali. A passagem da infância para a adolescência é permeada por mudanças orgânicas, cognitivas, afetivas, psicológicas e sociais, não importa onde estejam os protagonistas da vida. Há alterações de humor que isolam o jovem ou o põem no fogo das aventuras, com disposição para vivenciar, com coragem quase infinita o que der e vier. Há sentimentos superdimensionados de desamor, com frequência, no ambiente familiar ou escolar, com a valorização exacerbada de eventuais brincadeiras ou jogos dos colegas, hoje, apelidados invariavelmente de bullying. Há, ainda, a vivência de grandes paixões e do primeiro amor, ainda sem a crença de que quem aprende a amar, aprende a sorrir e a chorar, também – faces de uma mesma moeda. Há sede quase insaciável de descobrir o mundo e desvendar novos conhecimentos. Há susto diante da imagem refletida no espelho. Há quase irreconhecimento frente a um rosto que lhe parece infinitamente feio, com espinhas enormes, acompanhadas por cabelos ressecados e tudo num corpo desengonçado. O que se aproxima da realidade? As fotos de criança espalhadas pela casa ou a figura “horrorosa” que o espelho projeta em meio a um sorriso maroto? São muitas as transmutações entre infância e adolescência sintetizadas nos 166 minutos de projeção de Boyhood, produção conjunta de Cathleen Sutherland, John Sloss, Jonathan Sehring e Richard Linklater. Tais mutações se intensificam numa sociedade marcada por reestruturações familiares. Hoje, vivemos com naturalidade em meio a famílias com diferentes contornos: duas mães ou dois pais; adultos que reúnem sob o mesmo teto filhotes de uniões anteriores, em caráter definitivo ou nos célebres fins de semana, onde pais ou mães, sem a convivência cotidiana, tentam, inconscientemente, compensar sua ausência no dia a dia ou, quiçá, o tempo perdido. E há muito mais: padrastos ou madrastas que se encobrem sob véus de ternura e só, então, após um tempo mais, ou menos longo, despem a máscara do alcoolismo ou das exigências disformes que cheiram a um autoritarismo ímpar, tal como se dá com a postura gradativamente hedionda do segundo e do terceiro marido de Olivia. E é interessante perceber que tal como vivenciamos na rotina diária, cada criança e / ou adolescente reage de forma distinta. A irmã Samantha (Lovelei Linklater) parece imune ao comportamento disforme dos companheiros da mãe e reage com displicência ensaiada à perfeição. Ambos – o “sério” professor universitário e um descolado qualquer são completamente distintos do pai biológico, Mason Sr. Este vive a vida com ânsia de viver cada instante. Ao tempo em que conserva um coração de criança, deixa à mulher todas as responsabilidades da vida adulta. O sucesso (ainda que discutível para alguns) de Boyhood advém de sua proximidade com o cotidiano do homem contemporâneo: amores e desamores, álcool em profusão ou drogas mais pesadas, famílias que se fragmentam e se recompõem, mulheres que enfrentam com galhardia mil dificuldades e quando se impõem profissionalmente, se autoperguntam: para quê? Afinal, é o momento de os filhos partirem em busca da construção de sua própria vida, independentemente das marcas deixadas por uma infância e adolescência recheadas por muitas alegrias e, nem por isso, por menos dor! Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica