Crítica
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Sinopse
A saúde da democracia norte-americana é examinada por meio de um experimento. No Texas, mil meninos de 17 anos de idade têm a missão de construir um governo representativo. Enquanto uns encaram os desafios de organizar partidos, formar consensos e pensar na coletividade, outros lançam mão de truques baixos.
Crítica
O sistema político nos Estados Unidos é tão complicado que os próprios norte-americanos precisam fazer um curso intensivo durante a adolescência pra aprender como funciona. É o dia a dia de um desses “cursos de verão” que se ocupa a narrativa de Boys State, documentário dirigido por Amanda McBaine e Jesse Moss (produtor de Gay Chorus Deep South, 2019). O longa, adquirido pela AppleTV+ após ter sido premiado nos festivais de Sundance e de SXSW (alguns dos únicos eventos do gênero a terem acontecido presencialmente em 2020, ainda antes do início da pandemia da COVID-19), expõe sem pressa muitas das incoerências e dissonâncias que ditam a formação prática e teórica dos futuros governantes do maior país do mundo. No entanto, ao mesmo tempo deixa de lado diversas oportunidades de aprofundar esse debate, preocupando-se apenas em oferecer visibilidade ao que merece ser discutido, sem, no entanto, dar espaço para a reflexão. Assim, apoia-se demais no retorno do espectador, sem que esse receba o estímulo suficiente para se engajar nesse processo.
Em diversos estados por todo o país, os melhores alunos de cada escola são indicados – caso tenham interesse, é claro – para participarem da semana Boys State. Ou seja, durante sete dias, estarão reunidos num mesmo centro de convenções, geralmente na capital, para atuarem como se fossem políticos experientes. O grupo é dividido aleatoriamente em dois partidos: os Federalistas e os Nacionalistas. A alusão é clara – deveriam, supostamente, representar os dois maiores partidos nacionais, os Democratas e os Republicanos. No entanto, o registro de McBaine e Moss se dá em Dallas, capital do Texas, uma região de ampla maioria republicana. Ou seja, aí já surge o primeiro problema: apesar de separados, ambos os lados possuem visões de mundo bastante similares, de forte tendência conservadora, sem dedicar o espaço necessário para causas mais progressistas, como direitos humanos e representatividade de minorias – por outro lado, se discute até o esgotamento se o armamento da população deve ser incentivado ou promovido, como se houvesse alguma diferença. Um detalhe que, apesar de não escapar aos realizadores, também não chega a ser esmiuçado a contento.
Outra questão problemática está estampada no próprio título – do filme e do programa: Boys State, ou seja, uma atividade dedicada apenas à meninos, todos adolescentes em torno dos 17 anos. Chega-se a indagar, rapidamente, qual seria o motivo para a ausência de meninas no grupo. Não da existência de um “girls state” – que até existe, pelo que se sabe – mas do porquê não se ter um “Young state”, ou seja, moças e rapazes juntos, discutindo e trocando ideias em conjunto, sem segregação. Isso se reflete em outros âmbitos. Não há nenhum jovem identificado como LGBTQIA+, e negros e latinos são tão raros – basicamente um de cada – que, apesar de receberem a missão de representarem um contingente muito maior, soam quase como exceções, e não uma parcela significativa da população que não pode ser desconsiderada. Se são estes garotos que assumirão os problemas e deverão buscar as possíveis soluções nos anos que virão, como podem ser tão cegos em relação à própria formação da sociedade a qual pretendem liderar?
Por fim, talvez a mais questionável das decisões dos diretores seja o fato de não oferecer um equilíbrio aos escolhidos como protagonistas. Opta-se por seguir os passos de Ben Feinstein e de René Otero – respectivamente, os presidentes escolhidos dos Federalistas e dos Nacionalistas – o que parece ser justo, pois é um de cada lado. Mas, ao se debruçar sobre as primárias que determinarão os concorrentes ao cargo mais disputado – o de governador – as atenções estarão voltadas apenas aos candidatos federalistas – Steven Garza, filho de emigrantes mexicanos, e Robert MacDougall, um legítimo representante do norte-americano nato. O escolhido dos nacionalistas, por exemplo, só entra em cena quando o martelo já está praticamente batido. Quem é ele, qual sua história e o que tem para agregar ao debate? Pouca coisa, talvez nada. Seria apenas uma marionete, portanto? Também não é discutido a fundo, uma vez que é apenas exibido, mas nunca refletido.
McBaine e Moss exploram como se fossem naturais desse universo as entranhas dos processos sobre os quais se debruçam. Porém, ao invés de destacarem os absurdos e colocarem em xeque estas contradições, tudo o que fazem é deixar que estes diálogos, cenários e consequências permaneçam em cena, sem a reflexão necessária que tais conjunções podem provocar. No final, quando já se desperdiçou todas as oportunidades de proporcionar essa troca, entre objeto e sujeito, imagens posteriores ao do período da maior parte das gravações tentam propor essa suposta conclusão, indicando os caminhos que cada um dos ‘eleitos’ seguiu após terem passado pelo projeto. Mas de que adiantam? Já não seria tarde demais – tanto para o filme, como também para os próprios envolvidos nessa engrenagem há muito contaminada? Boys State parte de um tema urgente, cada vez mais necessário. Porém, mesmo com todos os elementos em mãos para ao menos propor caminhos a serem seguidos, exime-se desta função, buscando uma contrapartida saudável, mas nem sempre viável.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Robledo Milani | 6 |
Daniel Oliveira | 8 |
Chico Fireman | 7 |
MÉDIA | 7 |
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